Naquela manhã chuvosa e triste, foi maior a afluência de passageiros aos autocarros da carreira que, várias vezes ao dia, faziam a ligação entre um subúrbio e o centro da cidade. O motorista, já cansado pelas horas de serviço ao volante da possante viatura, parecia carrancudo. Os passageiros, num mutismo muito matinal, exibiam também caras pouco amistosas, indiferentes ante a paisagem costumeira, perdidos em cogitações à volta das suas habituais preocupações.
O ambiente crispou-se quando duas pessoas, a propósito de um lugar vago, encetaram uma discussão acesa. Ambas pretendiam o assento, a que cada qual se julgava com melhor direito. Enquanto o passageiro mais velho invocava a sua idade, a outra candidata pretendia ter sido a primeira a detectar a vaga. O motorista, sendo a única autoridade presente, tentou apaziguar os ânimos, mas sem êxito. Passageiros houve que tomaram partido, ora pela pessoa idosa, ora pela outra de meia-idade que, mais afoita, ocupou o lugar disputado para, com o facto consumado, atalhar a discussão, mas essa sua atitude suscitou um coro de vozes indignadas.
Entretanto, o autocarro travou e imobilizou-se em mais uma paragem. Desceram algumas pessoas e, depois, entrou uma jovem mãe, que trazia embrulhado num xaile o seu bebé. Apesar da falta de lugares e a recente discussão, de que ainda se ouviam alguns ecos, duas ou três pessoas levantaram-se e a mulher, agradecida, pôde sentar-se com o filho ao colo. O pequenito, de faces rosadas e olhinho muito vivo, espreitava para tudo e para todos com muita atenção. Perplexo, só sossegava quando o seu olhar se cruzava com o de sua mãe, o único rosto que lhe era familiar.
Naquele ambiente tenso e frio de uma manhã qualquer, escura e aziaga, tudo parecia sombrio, mas a presença daquele bebé logrou que as faces duras dos trabalhadores se descontraíssem e que os seus lábios circunflexos se abrissem em discretos sorrisos. Foi como se um raio de sol entrasse naquele espaço e o azul do céu florisse nos corações daquelas mulheres e homens, que pareciam condenados à dura escravidão de um trabalho servil. Um milagre escondido num menino recém-nascido.
O Natal é Deus presente num sorriso de amor. O Omnipotente fez-se visível na fraqueza do mais pequenino ser humano. Inerme, Ele desafia o poder dos poderosos. Pobre, Ele ri-se da opulência dos abastados. Perseguido e ignorado, faz-se irmão de todos os indigentes e humilhados, porque os párias deste mundo não estão esquecidos para Deus.
No silêncio da sua voz, Ele fala do amor do Pai. A sua mudez cala as discussões, o seu sorriso destrói os ressentimentos, a limpidez do seu olhar purifica as consciências, une as famílias e pacifica as nações. Porque a sua mão, pequenina mas poderosa, abençoa o mundo.
Neste Natal, quando Ele chegar e bater de mansinho à sua porta, deixe-O entrar. Prepare-Lhe, pelo sacramento da penitência, um lugar no seu coração, porque é aí que, pela Eucaristia, Ele quer nascer de novo. E, depois, faça uma paragem na sua vida, abra os seus braços e dê o seu colo a quem ainda o não tem. Porque esse menino sem ninguém é, como Jesus, filho de Deus, mas precisa, aqui na terra, de uns pais também.
P. Gonçalo Portocarrero de Almada in Voz da Verdade de 15.12.2013
*Para o Refúgio Aboim Ascensão, com muito apreço e amizade.
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