Anda por aí um sururu dos diabos – nunca melhor dito … – por causa da entrevista do Papa ao Padre António Spadaro, director da revista La Civiltà Cattolica.
Alguns publicanos embandeiraram em arco, à conta da suposta aprovação, pelo Santo Padre, de certas atitudes que a doutrina da Igreja condena. Outros, pelo contrário, quando souberam que o Papa lamentava a obsessão de alguns por certos temas morais, escandalizaram-se, como se, depois de anos de generosa dedicação a essas causas fracturantes, agora lhes fugisse o chão debaixo dos pés. Se os primeiros se sentiram, depois de décadas de aparente exclusão eclesial, finalmente acolhidos e abençoados, os últimos, ao invés, experimentaram a amargura da contradição, como se tivessem sido traídos pelo seu bem-amado chefe e principal mentor.
Não se pode minimizar uma declaração papal, mas também não se deve exagerar a sua relevância. A conversa do Papa Francisco com o jesuíta que o entrevistou não é mais do que isso e, como tal, deve ser entendida. O Santo Padre não pretendeu reformar a doutrina, nem a moral católica, que permanecem incólumes e que devem ser aferidas pelos textos oficiais, como são o Catecismo da Igreja Católica, as encíclicas, os documentos conciliares, as instruções dos dicastérios romanos, etc. Portanto, do ponto de vista doutrinal, nada de novo na Igreja Católica.
Outra é a questão pastoral do acolhimento a dispensar aos fiéis e aos não crentes que se encontram em situações especiais. Receber, com delicadeza e afecto, um doente, não é sinónimo de condescendência com o seu mal: pelo contrário, o amor ao enfermo obriga até a combater a sua enfermidade, mas não de tal forma que, debelando-se o mal, venha o paciente a morrer da cura.
Para um profissional da saúde, chamado a atender as pessoas que se envolveram numa rixa, a questão da culpa não se põe: todos são, por igual, pacientes e todos merecem a mesma solicitude clínica. O juiz determinará depois, se necessário, a responsabilidade criminal dos intervenientes, mas uma tal inquirição está obviamente para além do acto médico.
O Papa Francisco, cuja índole pastoral predomina sobre a doutrinal ou a meramente disciplinar, quis recordar que a Igreja e os seus ministros devem ser, sobretudo e principalmente, não juízes mas pastores, não polícias da fé e dos bons costumes, mas agentes da misericórdia divina, médicos das almas todas, pais e irmãos de todas as pessoas.
Se, depois desse acolhimento inicial, que a todos deve ser dispensado, se gerar uma dinâmica de conversão pessoal, fará sentido o oportuno esclarecimento doutrinal, como introdução aos sacramentos da iniciação cristã, ou da cura. O catecúmeno será, então, informado sobre as exigências morais fundamentais que comporta a vida cristã e a que se obriga pelo santo baptismo. Por sua vez, o já cristão em processo de reaproximação à Igreja deverá, para esse efeito, recorrer à confissão sacramental e, nessa sede, o sacerdote não poderá deixar de ajuizar, de forma congruente com a doutrina cristã, os actos de que espontaneamente se acuse o crente, exortando-o à prática da vida cristã, sob pena de não poder ainda receber a desejada absolvição.
Mas, antes desse momento sacramental, quer por via do baptismo, quer por via da reconciliação e penitência, há certamente, para muitas pessoas, um longo caminho a percorrer. É para esse penoso percurso que o Papa Francisco quer oferecer o seu bordão de bom pastor e a solicitude misericordiosa da Igreja a que preside na caridade.
Quando o Cardeal Bergoglio aceitou a sua eleição como sucessor de Pedro, escolheu para si mesmo o nome de Francisco. Fê-lo em nome dos pobres e com a consciência de que esse nome era, para a Igreja e para o mundo, um desafio e uma provocação. Também o poverello de Assis o foi no seu tempo, pelo seu desprezo das riquezas e pela originalidade escandalosa do seu exemplo mendicante e da sua pregação.
O Papa Francisco incomoda muita gente, porque não teme ir ao encontro da ovelha extraviada. Não consente no seu extravio, mas também não a enxota. Nem teme, na mais ortodoxa fidelidade à doutrina católica, as críticas dos bons, bem mais papistas do que ele. Também de Jesus os fariseus diziam que não observava o sábado e que convivia com publicanos e pecadoras… Em boa hora o Senhor o fazia, porque há mais alegria no reino dos Céus, por um pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que perseveram no bem.
Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada
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