Num inquérito oportuno da RTP, intitulado "Ler, Ler melhor", em busca, junto de cada inquirido, de saber qual foi "o livro da minha vida", e as razões de escolha, escolhi, entre vários, aquele que mais tem a ver com a situação trágica, que se agrava diariamente, nesta Europa que governou o mundo, e no país que é nosso e sofre as consequências do novo-riquismo que se foi sobrepondo às diferenças ideológicas invocadas durante meio século de Guerra Fria.
Destaquei, como mais indicado e de previsões confirmadas, um facto de que a realidade nos tem desabituado, o livro de Josué de Castro, Geografia da Fome (1946), que fez dele um cidadão do mundo.
Brasileiro, nascido num tempo em que a sua pátria ainda não era a potência emergente da atualidade, mereceu este comentário de Pearl Buck, Prémio Nobel da Literatura: "É este o livro mais encorajador, mais esperançoso e mais cordial que já li em toda a minha vida... ler este livro tão expressivo, tão claro em seu pensamento, tão racional na exposição dos factos científicos, tão sábio em suas sugestões acerca de novas formas de conhecimento, é encontrar uma renovada esperança para a humanidade."
Embora também na sua terra vigore frequentemente o princípio de que santos da casa não fazem milagres, ele foi ali em vida uma exceção, exceto junto do Governo da época. E se há razão para de novo ser lembrado, é porque a própria ONU, já no século passado, publicou dois relatórios em que se advertia que a miséria no mundo era uma ameaça tão grave como a das armas de destruição maciça.
Por esse tempo, homens com a responsabilidade de Luís Echeverría Álvarez, presidente do reunificado México, reconhecia que "pela memória e pelo coração, rejubilamo-nos por este brasileiro extraordinário que connosco lutou para fazer reinar a justiça e a solidariedade internacionais. Josué de Castro não é mais um de nós".
Todavia, nesta crise que globalmente se agrava, ele é um de nós, quando, a partir do seu texto, não pode ignorar-se a responsabilidade que governanças ineficazes e mal esclarecidas assumiram pela situação a que a população, com dimensão crescente no globo, agora também entre os ocidentais, foi conduzida, porque as vozes encantatórias capazes de movimentar o esforço cívico das sociedades civis foram caladas por uma teologia de mercado sem paradigma ético reconhecido, esta a inquietação que orienta as investigações de Kung, e agora a nova evangelização do Papa Francisco.
Mas para manter as coisas no plano agnóstico das Constituições, democráticas por herança histórica recebida, ou imperativas pelo direito internacional que a ONU consagrou, há uma leitura obrigatória para os governos de todo o mundo, e também para os ricos e pobres da Europa, que é a Declaração Adotada pela Assembleia Geral da ONU, com o número 66/228, intitulada "O Futuro que nós queremos", documento resultante da Conferência da ONU sobre o desenvolvimento durável.
Talvez ajude, entre nós, a reconhecer que, além da Constituição da República Portuguesa, e da suposta sabedoria da troika, existe o paradigma global da ONU, ao qual todos os países da organização estão obrigados.
Em vista das notícias sobre a validade da ciência em que se baseia a imposta política de austeridade, e a fadiga tributária que atinge a sociedade civil, convém não esquecer que anteriores às obrigações perante a troika existem sérias obrigações internacionais a que o Estado português também está obrigado.
O problema da relação entre capacidades e deveres de Estado só pode ser dimensionado avaliando a rede de deveres existentes, tendo em vista, internacionalmente, "O Futuro que nós queremos". É certo que o poder não coincide sempre com o querer, mas essa circunstância não dispensa manter presentes obrigações assumidas como diretivas, que não são apenas para animar os discursos, são para condicionar a ação dos responsáveis em função de uma escala de valores assumidos em nome do país.
Adriano Moreira in DN online http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=3204165&seccao=Adriano%20Moreira&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco&page=-1
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