A crise em Portugal cria graves problemas de pobreza logo na altura em que a Segurança Social, espartilhada na emergência financeira, está menos capaz de lhes acudir. Muitos dão o Estado-providência como falido. Isso não é verdade. O sector público terá sempre um lugar indispensável no apoio social. O que faliu foi o seu totalitarismo assistencial.
Há décadas que, por opções ideológicas e populismo eleitoral, os poderes públicos nacionalizam as esmolas. Metem-se entre pobres e benfeitores, tributando os segundos para ter o mérito de ajudar os primeiros. A fúria regulatória de uma burocracia crescente persegue qualquer obra de solidariedade, enquanto cria alternativas estatais para as estrangular. Foi este suposto Estado-providência que se mostrou insustentável. Agora os poderes públicos têm de encontrar o seu lugar subsidiário numa sociedade equilibrada.
A inelutável necessidade de contar com a sociedade e Igreja no apoio aos necessitados exige também que se reveja a antiga campanha cultural que preparou o assalto público à assistência social. Há décadas que várias forças se dedicam à tarefa de denegrir as multisseculares instituições de caridade cristã, atacando em nome dos pobres aqueles que mais se esforçam para os ajudar. Alguns casos ficaram famosos.
O professor José Barata Moura, reputado académico e antigo reitor da Universidade de Lisboa, é autor de algumas das melhores canções infantis e de intervenção da língua portuguesa. O seu primeiro disco, Caridadezinha (Orfeu, 1973), incluía um dos temas mais famosos e poderosos nesta questão: Vamos brincar à caridadezinha. Nele o cantor ridiculariza a "festa, canasta e boa comidinha" onde, com "os desportistas da caridade", se "rouba muito mas dá prenda, e ao peito terá uma comenda".
Há mais exemplos. O genial Quino (Joaquín Salvador Lavado), criador argentino de Mafalda, a contestatária, numa das suas hilariantes e lúcidas tiras pôs Susaninha a dizer à amiga: "Também fico com a alma ferida quando vejo os pobrezinhos, acredita! Mas quando formos senhoras faremos uma associação de caridade. E organizaremos chás e banquetes com perú, lagosta, leitão... para arranjarmos fundos para comprarmos farinha, massa, pão e essas coisas que comem os pobres" (Quino, 1973, 13 anos com a Mafalda, Publicações Dom Quixote, 1983, p.128).
A crítica social é compreensível. É sempre fácil ridicularizar os opulentos e todos ficamos chocados pelo contraste entre luxo e miséria. Mas se pensarmos um pouco vemos como esta censura é nociva e contraproducente. Afinal, se há muita coisa a reprovar nos endinheirados, uma das poucas em que os devemos louvar é precisamente quando ajudam os necessitados. Esta ferroada atinge os pomposos quando fazem o bem.
Tais repreensões não são feitas do ponto de vista dos desgraçados, os quais, independentemente da motivação da ajuda, ganham muito com ela. Se queremos ajudar os pobres, é bom não desdenhar o dinheiro de quem o tem. Eles ficariam muito prejudicados com a promessa final da canção: "não vamos brincar à caridadezinha."
Além disso, o mesmo contraste estético que motiva a crítica ressurge claramente nas alternativas. Havia "chás e banquetes" na URSS e já recebi folhetos de congressos sobre a pobreza em hotéis de luxo. Pior, o sucesso destas críticas acabou por ir para lá do pretendido. Não só "estragaram" a palavra caridade, como se costuma hoje ouvir a cada passo, preferindo-se expressões anódinas e vazias, como solidariedade ou assistência, mas tiveram efeito claramente redutor nos esforços de apoio social. É comum ainda hoje, 40 anos depois, ouvir a crítica de "caridadezinha" cada vez que alguém cria uma iniciativa de auxílio. A gargalhada destrói sempre mais do que quer.
Claro que a justificação do remoque era mais profunda. Preconizava-se uma revolução social, que garantisse a todos os cidadãos o direito a certo rendimento, seguro pelo Estado. É isso que falha sucessiva e fragorosamente desde 1973, confirmando a maior força social da humanidade, a caridade cristã.
João César das Neves in DN online
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