A intelectualidade portuguesa cria por vezes certas frases, que ninguém sabe bem de onde vêm mas que se tornam certezas consensuais sem que se questione a veracidade. Ultimamente, várias luminárias põem um ar grave para assegurar ao público, como resultado de profunda investigação, que a origem da actual crise está nas decisões de Cavaco Silva enquanto primeiro-ministro. Será que faz sentido?
A acusação é prova de um dos maiores vícios das nossas elites, a tendência para fulanizar os assuntos. Embora ostentem referências sociológicas e até marxistas, grande parte dos nossos comentadores não consegue resistir à tendência individualista de atribuir forças históricas a personagens particulares. Como pode um homem só, por poderoso que seja, ser culpado de um fenómeno desta dimensão? A evidente inanidade do raciocínio não desarma o opinador, até porque o paradoxo aumenta o picante da descoberta. Quanto mais improvável, mais profunda parece a análise.
O mesmo se diga do anacronismo. Será possível um consulado terminado em Outubro de 1995 ser responsável pela situação de 2011? O poder já passou por cinco primeiros-ministros, boa parte do partido opositor e dois deles por mais de seis anos. Por graves que fossem as malfeitorias praticadas em finais dos anos 1980 e inícios dos 90, houve mais que tempo para serem emendadas.
Mais curioso é ver os dados objectivos. A causa directa desta crise é financeira. Mas em 1995 a dívida externa bruta de Portugal era 55% do PIB, tendo subido entretanto para 220%. O défice da balança corrente e capitais era nulo (0,1% do PIB), começando só no ano seguinte a descida fatal que o trouxe até aos 10% em 2001, que nos arruínam desde então. Nas contas públicas, o desequilíbrio era alto, 6% do PIB, como costuma na nossa democracia, mas a dívida andava nos 54%, metade do que entretanto se acumulou. O buraco que nos entregou à troika é sem dúvida posterior a Cavaco.
A acusação decisiva, no entanto, não é financeira mas económica. O Governo do actual Presidente, diz-se, conseguia acertar as contas graças aos dinheiros de Bruxelas, mas entretanto arruinava a produção nacional. Toda a gente sabe que foi ele quem deu cabo da nossa agricultura, pescas e indústria, até com subsídios para não se produzir.
Por que razão teria seguido um plano tão sinistro e suicida? Aí os intelectuais são mais vagos, mas ouvem-se alusões a pressões europeias, a que o bom aluno cavaquista cedeu ingenuamente. Entretanto os milhares de empresários e trabalhadores desses sectores não contam senão como vítimas apáticas e inocentes da perversa maquinação política, enquanto o interesse que a Europa teria em nos arruinar permanece um mistério.
Tem graça que a indústria, supostamente destruída pelo cavaquismo, tenha crescido um total acumulado de 30% nesse consulado e mais 20% nos seis anos seguintes. Estagnou de 2001 a 2008 e foi só depois, na actual crise, que já caiu uns 10%. A agricultura manteve a produção na década cavaquista e para em seguida começar a cair, também 10% acumulados. Estes especialistas, que tanto lamentam os sectores fundamentais, nunca lá vão nem conhecem quem o faça. Os poucos que entendem essas actividades sabem que o estrangulamento está na falta de trabalhadores e capitais interessados. O País só quer trabalhar em escritórios, virou as costas às fábricas, quintas e navios, mas descarrega a consciência pesada numa mirabolante política antiprodutiva.
O consulado Cavaco Silva, com defeitos como todos, constitui o último período de crescimento saudável e o único da democracia portuguesa. Logo depois, o projecto euro embebedou empresas e Estado em crédito barato, causando o colapso financeiro de 2011 e a década perdida que o antecedeu. Uma acusação nominal para uma orientação geral é sempre injusta, mas a fazê-lo seria mais plausível acusar a tendência Guterres-Sócrates. Uma coisa, porém, é comum há décadas e permanece: uma intelectualidade displicente que nunca se esforça por fundamentar com rigor as teorias que impõe por inércia.
João César das Neves in DN online
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