A mudança em curso nos países do Mediterrâneo, levada a efeito pelo que genericamente é por vezes chamado "revoluções árabes", exige seguramente atenção dos europeus e da sua União em desequilíbrio, para encarar os acidentes de percurso, sendo tempo de pensar seriamente sobre os futuros previsíveis constitucionais dos movimentos que não são de moldura igual em todos os países muçulmanos. Um dos temas mais relevantes, e inquietantes, é o que diz respeito ao convívio pacífico das religiões, porque ao menos nesta área geográfica continua a ser arriscado admitir que haverá paz civil sem paz entre as religiões.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de Novembro de 1945, assim como o Pacto de 1966 sobre os direitos civis e políticos, incluem a liberdade religiosa, e não deveria ser necessário recordá-lo aos signatários passados e futuros dos textos. Todavia, o significado destes textos está dependente de leituras diferentes segundo os preceitos de cada área cultural, sendo de não esquecer que existe uma Declaração Muçulmana de Direitos do Homem, e que algumas convicções ocidentais não coincidem com as dos países do Corão, talvez nem dos crentes nem dos cidadãos. Talvez não possa considerar-se extinta ou amenizada a recordação das cruzadas, e que essa memória renasça quando se fazem diligências a favor dos cristãos e da sua liberdade anunciada e garantida pelos textos internacionais.
Por outro lado, tem sido observado, com oportunidade, que se as democracias ocidentais se declararam laicas, nada assegura com fundamentos claros que as chamadas revoluções árabes não irão manter conservadorismos seculares, que não se declararão titulares de religião de Estado, que não cederão a visões seguramente simplistas mas duradoiras sobre os valores ocidentais.
Foi recentemente relembrado o estudo de 2005 do Pew Research Center (Doris Bachelot) segundo o qual os muçulmanos olham os ocidentais como "egoístas, cúpidos, desonestos, arrogantes, e imorais", e que os ocidentais respondem considerando-os em maioria "fanáticos, intolerantes, violentos, e não respeitadores das mulheres".
A experiência ocidental mostra que a separação dos poderes político e religioso é um passo indispensável para o seu modelo político democrático, e designadamente o que se passa com os coptas do Cairo faz crescer as dúvidas e os receios porque as mortes e perdas, e as migrações forçadas para o estrangeiro, adensam os temores sobre o sentido e a autenticidade de declarações como as dos Irmãos Muçulmanos do Egipto, ou do partido Ennahda da Tunísia, garantindo uma participação democrática na construção do futuro em curso. Por isso, o Papa, no Sínodo de Outubro que reuniu em Roma as seis igrejas católicas do Oriente, salientou a necessidade de "consolidar a presença dos cristãos", evitando as emigrações forçadas pelas circunstâncias adversas, para mais tarde relembrar, nas jornadas para a paz, que "a liberdade religiosa é uma autêntica arma para a paz", o que tem de ser confrontado com o anúncio, imediatamente feito após a vitória da revolução na Líbia, de que a constituição não admitirá nenhum preceito contrário aos do Corão.
A impressão dos comentadores mais optimistas é que não será razoável pensar que a geração que chamaram Facebook desaparece do poder novo, e chamam a atenção para o facto de a "tentação ocidental" não poder ser eliminada pelo regime longo do Irão. Mas a experiência adverte que o conservadorismo pode não se limitar a eliminar os "fundamentalismos politicamente violentos". A condição das mulheres vai ser um barómetro da aproximação com a modernidade ocidental, o comportamento em relação aos adversários servirá de medida de avaliação do respeito pelos princípios essenciais que são a intervenção do poder judicial e o respeito pelas diferenças religiosas, a adesão cooperante com todos os organismos da ONU uma garantia de que o objectivo de uma nova ordem tem padrões reconhecidos.
Adriano Moreira in DN online
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