Certos comentários à economia portuguesa parecem de quem perdeu um episódio de uma série e esqueceu a sequência.
As medidas do Orçamento são duras, corajosas, indispensáveis. Mas não resolvem nada. Não se recordam da última emergência orçamental em 2005? Aí também se diminui o défice. Quatro anos depois, tudo estava pior porque a estrutura dos gastos permaneceu. Descer salários e pensões não é dieta, é vestir uma cinta. Subir impostos é usar roupas largas. A gordura fica na mesma. O Governo tem razão na emergência, mas o que conta são as medidas estruturais. O resto não é austeridade. É aperto.
Hoje, muitos dizem que não temos ministro da Economia porque não apresenta propostas para dinamizar o crescimento. Já se esqueceram do episódio em que o FMI propôs a desvalorização fiscal, descendo a TSU, precisamente para promover as empresas? Que é que toda a gente disse na altura? Que não era boa ideia! Claro que não! Acham que na situação em que estamos há boas ideias para dinamizar a economia? Após anos de disparates que aumentaram custos, prejudicaram competitividade e estrangularam empresas como pode haver boas ideias de crescimento? Haver más já é excelente.
Numa situação desesperada, em que se tem de tratar com urgência da dívida com enxurradas de políticas contraccionistas, e não há tempo, meios ou folga para pensar no progresso, só existem duas hipóteses. Ou se tenta meter no meio da enxurrada uma tímida medida expansionista, necessariamente frágil, deficiente, talvez inútil, ou se desiste de crescer nos próximos anos e seja o que Deus quiser. O que não se pode é fingir que afinal somos a Alemanha é impor exigências e esquisitices nas poucas propostas que nos restam.
O problema da descida da TSU não era a sua eficácia, mas ir contra todos os instintos políticos viscerais. Descer impostos é como cortar o fígado! Então fez-se um estudo a fingir, com valores que tinham de dar mal, para se embolsar o dinheiro da taxa. A escolha é admissível, mas se num episódio se destrói a única ideia que há, não vale no seguinte ficar ofendido por não haver ideias! Decidimos de vez esquecer a política de desenvolvimento. Porque alterar a taxa de câmbio ou social única é política. Mexer no horário de trabalho é gestão de empresas.
Pior para o crescimento do que a falta de políticas é a falta de crédito bancário. Hoje toda a gente critica os bancos. Isso é normal e saudável e acontece em todos os episódios, séries e temporadas. Os bancos sabem que vão sempre ficar mal e não se importam, porque o põem na conta. O que é estranho desta vez é criticar os bancos por não darem crédito às empresas.
Os bancos só ganham dinheiro a dar crédito. O crédito interno total tem subido todos os meses, e até mais que a inflação. É verdade as empresas estão a ser estranguladas por falta de liquidez, mas isso não é porque os bancos não queiram dar crédito.
Então já se esqueceram daquela parte em que o Governo, em finais do ano passado e princípios deste, fingia que estava tudo bem e não era precisa ajuda, enquanto impingia dívida pública a todo o passante incauto? Não se lembram que até o Qatar e a China tiveram o privilégio de levar um bocadinho? É verdade que o filme não mostrou, mas acreditam mesmo que se começou pelos trópicos, ou se foi lá só depois de empanturrar a banca portuguesa com esse lixo? Ainda hoje as empresas produtivas não têm crédito porque Estado e empresas públicas levam o que há e o que não há. Não é que os bancos estejam inocentes, mas a gente conhece o filme.
É verdade que no Orçamento o Governo diz querer reduzir a despesa. Mas o Estado é muito mais que o Governo, e o sector público muito mais que o Estado. Os sucessivos PEC falharam todos. Num episódio anterior até nos confessaram não saber a quantos funcionários têm pago.
O cartaz à porta, como sempre, diz: "Austeridade". Em anos anteriores, esse musical acabou sempre substituído pela velha tragicomédia a preto e branco: "Finjo que corto, enquanto pagas o que já gastei" ou, na versão inglesa, "The sting".
João César das Neves in DN online
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