1. A fé cristã perante o desafio do relativismo; 2. O relativismo religioso; 3. O relativismo ético-social; 4. Os problemas antropológicos do relativismo.
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1. A fé cristã perante o desafio do relativismo
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1. A fé cristã perante o desafio do relativismo
As presentes reflexões tomam como ponto de partida alguns ensinamentos de Bento XVI, embora não pretendam fazer uma exposição completa de seu pensamento [1]. Em diversas ocasiões e com diversas palavras, Bento XVI tem manifestado a sua convicção de que o relativismo tem se convertido no problema central que a fé cristã tem que enfrentar nos nossos dias [2]. Alguns meios de comunicação têm interpretado essas palavras como referidas quase exclusivamente ao campo da moral, como se respondessem à vontade de qualificar do modo mais duro possível todos os que não aceitam algum ponto concreto do ensinamento moral da Igreja Católica. Esta interpretação não corresponde ao pensamento nem aos escritos de Bento XVI. Ele alude a um problema muito mais profundo e geral, que se manifesta primariamente no âmbito filosófico e religioso, e que se refere à atitude intencional profunda que a consciência contemporânea – crente ou não crente – assume facilmente com relação à verdade.
A referência à atitude profunda da consciência perante a verdade distingue o relativismo do erro. O erro é compatível com uma adequada atitude da consciência pessoal com relação à verdade. Quem afirmasse, por exemplo, que a Igreja não foi fundada por Jesus Cristo, afirmá-lo-ia porque pensa (equivocadamente) que essa é a verdade e que a tese oposta é falsa. Quem faz uma afirmação deste tipo, pensa que é possível atingir a verdade. Aqueles que a atingem – e na medida em que a atingem – têm razão e aqueles que sustentam a afirmação contraditória se equivocam.
A filosofia relativista, porém, diz que é preciso resignar-se com o fato de que as realidades divinas e as que se referem ao sentido da vida humana, pessoal e social, são substancialmente inacessíveis, e que não existe uma via única para aproximar-se delas. Cada época, cada cultura e cada religião têm utilizado diversos conceitos, imagens, símbolos, metáforas, visões etc. para expressá-las. Essas formas culturais podem opor-se entre si, mas, com relação aos objetos aos quais se referem, teriam todas elas igual valor. Seriam diversos modos – cultural e historicamente limitados – de aludir de modo muito imperfeito a realidades que não se podem conhecer. Em definitiva, nenhum dos sistemas conceituais ou religiosos teria, sob qualquer aspecto, um valor absoluto de verdade. Todos seriam relativos ao momento histórico e ao contexto cultural; daí a sua diversidade e, inclusive, a sua oposição. Mas, dentro dessa relatividade, todos seriam igualmente válidos enquanto vias diversas e complementares para aproximar-se de uma mesma realidade, que, substancialmente, permanece oculta.
Num livro publicado antes de sua eleição como Romano Pontífice, Bento XVI se referia a uma parábola budista [3]. Um rei do norte da Índia reuniu um dia um bom número de cegos que não sabiam o que é um elefante. Fizeram com que alguns dos cegos tocassem a cabeça e lhes disseram: “isto é um elefante”. Disseram o mesmo aos outros, enquanto faziam com que tocassem a tromba, ou as orelhas, ou as patas, ou os pelos da extremidade do rabo do elefante. Depois, o rei perguntou aos cegos o que é um elefante e cada um deu explicações diversas, conforme a parte do elefante que lhe haviam permitido tocar. Os cegos começaram a discutir, e a discussão foi se tornando violenta, até terminar numa briga de socos entre os cegos, que constitui o entretenimento que o rei desejava.
Este conto é particularmente útil para ilustrar a ideia relativista da condição humana. Nós, os homens, seríamos cegos que corremos o perigo de absolutizar um conhecimento parcial e inadequado, inconscientes da nossa intrínseca limitação (motivação teórica do relativismo). Quando caímos nessa tentação, adotamos um comportamento violento e desrespeitoso, incompatível com a dignidade humana (motivação ética do relativismo). O lógico seria que aceitássemos a relatividade das nossas idéias, não só porque isso corresponde à índole do nosso pobre conhecimento, mas também em virtude do imperativo ético da tolerância, do diálogo e do respeito recíproco. A filosofia relativista se apresenta a si mesma como o pressuposto necessário da democracia, do respeito e da convivência. Mas essa filosofia não parece dar-se conta de que o relativismo torna possível a burla e o abuso por parte de quem tem o poder em suas mãos: no conto, o rei que quer se divertir a custa dos pobres cegos; na sociedade atual, aqueles que promovem os seus próprios interesses económicos, ideológicos, de poder político etc. à custa dos demais, mediante o manejo hábil e sem escrúpulos da opinião pública e dos demais recursos do poder.
O que tudo isto tem a ver com a fé cristã? Muito. Porque é essencial ao Cristianismo o apresentar-se a si mesmo como religio vera, como religião verdadeira [4]. A fé cristã se move no plano da verdade, e esse plano é o seu espaço vital mínimo. A religião cristã não é um mito, nem um conjunto de ritos úteis para a vida social e política, nem um princípio inspirador de bons sentimentos privados, nem uma agência ética de cooperação internacional. A fé cristã, antes de mais, nos comunica a verdade acerca de Deus, ainda que não exaustivamente, e a verdade acerca do homem e do sentido de sua vida [5]. A fé cristã é incompatível com a lógica do “como se”. Não se reduz a dizer-nos que temos de nos comportar “como se” Deus nos tivesse criado e, por conseguinte, “como se” todos os homens fôssemos irmãos, mas afirma, com pretensão veritativa, que Deus criou o céu e a terra e que todos somos igualmente filhos de Deus. Diz-nos, além disto, que Cristo é a revelação plena e definitiva de Deus, «resplendor de sua glória e imagem de seu ser» [6], único mediador entre Deus e os homens [7] e, portanto, não pode admitir que Cristo seja somente o rosto com o qual Deus se apresenta aos europeus [8].
Talvez convenha repetir que a convivência e o diálogo sereno com os que não têm fé ou com aqueles que sustentam outras doutrinas não se opõem ao Cristianismo; na verdade, é todo o contrário. O que é incompatível com a fé cristã é a ideia de que o Cristianismo, as demais religiões monoteístas ou não monoteístas, as místicas orientais monistas, o ateísmo etc. são igualmente verdadeiros, porque são diversos modos limitados, cultural e historicamente, de se fazer referência a uma mesma realidade, que, no fundo, nem uns nem outros conhecem. Isto é, a fé cristã se dissolve se se evade, no plano teórico, a perspectiva da verdade, segundo a qual aqueles que afirmam ou negam o mesmo não podem ter igualmente razão nem podem ser considerados como representantes de visões complementares de uma mesma realidade.
A referência à atitude profunda da consciência perante a verdade distingue o relativismo do erro. O erro é compatível com uma adequada atitude da consciência pessoal com relação à verdade. Quem afirmasse, por exemplo, que a Igreja não foi fundada por Jesus Cristo, afirmá-lo-ia porque pensa (equivocadamente) que essa é a verdade e que a tese oposta é falsa. Quem faz uma afirmação deste tipo, pensa que é possível atingir a verdade. Aqueles que a atingem – e na medida em que a atingem – têm razão e aqueles que sustentam a afirmação contraditória se equivocam.
A filosofia relativista, porém, diz que é preciso resignar-se com o fato de que as realidades divinas e as que se referem ao sentido da vida humana, pessoal e social, são substancialmente inacessíveis, e que não existe uma via única para aproximar-se delas. Cada época, cada cultura e cada religião têm utilizado diversos conceitos, imagens, símbolos, metáforas, visões etc. para expressá-las. Essas formas culturais podem opor-se entre si, mas, com relação aos objetos aos quais se referem, teriam todas elas igual valor. Seriam diversos modos – cultural e historicamente limitados – de aludir de modo muito imperfeito a realidades que não se podem conhecer. Em definitiva, nenhum dos sistemas conceituais ou religiosos teria, sob qualquer aspecto, um valor absoluto de verdade. Todos seriam relativos ao momento histórico e ao contexto cultural; daí a sua diversidade e, inclusive, a sua oposição. Mas, dentro dessa relatividade, todos seriam igualmente válidos enquanto vias diversas e complementares para aproximar-se de uma mesma realidade, que, substancialmente, permanece oculta.
Num livro publicado antes de sua eleição como Romano Pontífice, Bento XVI se referia a uma parábola budista [3]. Um rei do norte da Índia reuniu um dia um bom número de cegos que não sabiam o que é um elefante. Fizeram com que alguns dos cegos tocassem a cabeça e lhes disseram: “isto é um elefante”. Disseram o mesmo aos outros, enquanto faziam com que tocassem a tromba, ou as orelhas, ou as patas, ou os pelos da extremidade do rabo do elefante. Depois, o rei perguntou aos cegos o que é um elefante e cada um deu explicações diversas, conforme a parte do elefante que lhe haviam permitido tocar. Os cegos começaram a discutir, e a discussão foi se tornando violenta, até terminar numa briga de socos entre os cegos, que constitui o entretenimento que o rei desejava.
Este conto é particularmente útil para ilustrar a ideia relativista da condição humana. Nós, os homens, seríamos cegos que corremos o perigo de absolutizar um conhecimento parcial e inadequado, inconscientes da nossa intrínseca limitação (motivação teórica do relativismo). Quando caímos nessa tentação, adotamos um comportamento violento e desrespeitoso, incompatível com a dignidade humana (motivação ética do relativismo). O lógico seria que aceitássemos a relatividade das nossas idéias, não só porque isso corresponde à índole do nosso pobre conhecimento, mas também em virtude do imperativo ético da tolerância, do diálogo e do respeito recíproco. A filosofia relativista se apresenta a si mesma como o pressuposto necessário da democracia, do respeito e da convivência. Mas essa filosofia não parece dar-se conta de que o relativismo torna possível a burla e o abuso por parte de quem tem o poder em suas mãos: no conto, o rei que quer se divertir a custa dos pobres cegos; na sociedade atual, aqueles que promovem os seus próprios interesses económicos, ideológicos, de poder político etc. à custa dos demais, mediante o manejo hábil e sem escrúpulos da opinião pública e dos demais recursos do poder.
O que tudo isto tem a ver com a fé cristã? Muito. Porque é essencial ao Cristianismo o apresentar-se a si mesmo como religio vera, como religião verdadeira [4]. A fé cristã se move no plano da verdade, e esse plano é o seu espaço vital mínimo. A religião cristã não é um mito, nem um conjunto de ritos úteis para a vida social e política, nem um princípio inspirador de bons sentimentos privados, nem uma agência ética de cooperação internacional. A fé cristã, antes de mais, nos comunica a verdade acerca de Deus, ainda que não exaustivamente, e a verdade acerca do homem e do sentido de sua vida [5]. A fé cristã é incompatível com a lógica do “como se”. Não se reduz a dizer-nos que temos de nos comportar “como se” Deus nos tivesse criado e, por conseguinte, “como se” todos os homens fôssemos irmãos, mas afirma, com pretensão veritativa, que Deus criou o céu e a terra e que todos somos igualmente filhos de Deus. Diz-nos, além disto, que Cristo é a revelação plena e definitiva de Deus, «resplendor de sua glória e imagem de seu ser» [6], único mediador entre Deus e os homens [7] e, portanto, não pode admitir que Cristo seja somente o rosto com o qual Deus se apresenta aos europeus [8].
Talvez convenha repetir que a convivência e o diálogo sereno com os que não têm fé ou com aqueles que sustentam outras doutrinas não se opõem ao Cristianismo; na verdade, é todo o contrário. O que é incompatível com a fé cristã é a ideia de que o Cristianismo, as demais religiões monoteístas ou não monoteístas, as místicas orientais monistas, o ateísmo etc. são igualmente verdadeiros, porque são diversos modos limitados, cultural e historicamente, de se fazer referência a uma mesma realidade, que, no fundo, nem uns nem outros conhecem. Isto é, a fé cristã se dissolve se se evade, no plano teórico, a perspectiva da verdade, segundo a qual aqueles que afirmam ou negam o mesmo não podem ter igualmente razão nem podem ser considerados como representantes de visões complementares de uma mesma realidade.
2. O relativismo religioso
A força do Cristianismo e o poder para configurar e sanar a vida pessoal e coletiva que tem demonstrado ao longo da história, consiste em implicar uma estreita síntese entre fé, razão e vida [9], na medida em que a fé religiosa mostra à consciência pessoal que a razão verdadeira é o amor e que o amor é a razão verdadeira [10]. Essa síntese se rompe se a razão que nela deveria entrar for relativista. Por isso, dissemos no início que o relativismo se converteu no problema central que a evangelização tem que enfrentar nos nossos dias. O relativismo é assim problemático porque – ainda que não chegue a ser uma mutação de época da condição e da inteligência humanas – comporta uma desordem generalizada da intencionalidade profunda da consciência com relação à verdade, que tem manifestações em todos os âmbitos da vida.
Em primeiro lugar, existe hoje uma interpretação relativista da religião. É o que atualmente se conhece como “teologia do pluralismo religioso”. Esta teoria teológica afirma que o pluralismo das religiões não é só uma realidade de fato, mas uma realidade de direito. Deus quereria positivamente as religiões não cristãs como caminhos diversos através dos quais os homens se unissem a Ele e recebessem a salvação, independentemente de Cristo. Cristo tem, no máximo, uma posição de particular importância, mas é só um dos caminhos possíveis e, desde logo, nem exclusivo nem inclusivo dos demais. Todas as religiões seriam vias parciais, todas poderiam aprender das outras algo da verdade sobre Deus, em todas haveria uma verdadeira revelação divina.
Essa posição descansa sobre o pressuposto da essencial relatividade histórica e cultural da ação salvífica de Deus em Jesus Cristo. A ação salvífica universal da divindade se realizaria através de diversas formas limitadas, segundo a diversidade de povos e culturas, sem se identificar plenamente com qualquer delas. A verdade absoluta de Deus não poderia ter uma expressão adequada e suficiente na história e na linguagem humana, sempre limitada e relativa. As ações e as palavras de Cristo estariam submetidas a essa relatividade, pouco mais ou pouco menos que as ações e as palavras das outras grandes figuras religiosas da humanidade. A figura de Cristo não teria um valor absoluto e universal. Nada do que aparece na história poderia ter esse valor [11]. Não nos deteremos agora em explicar os diversos modos em que se tem pretendido justificar esta concepção [12].
Destas complexas teorias ocupou-se a encíclicaRedemptoris Missio [13], de João Paulo II, e a declaraçãoDominus Iesus [14]. É fácil dar-se conta de que tais teorias teológicas dissolvem a cristologia e relativizam a revelação levada a cabo por Cristo, que seria limitada, incompleta e imperfeita [15], e que deixaria um espaço livre para outras revelações independentes e autónomas [16]. Para os que sustentam estas teorias é determinante o imperativo ético do diálogo com os representantes das grandes religiões asiáticas, que não seria possível não se aceitar como ponto de partida que essas religiões têm um valor salvífico autônomo, não derivado e não dirigido a Cristo. Também neste caso o relativismo teórico (dogmático) obedece, em boa parte, a uma motivação de ordem prática (o imperativo do diálogo). Estamos, pois, perante outra versão do conhecido tema kantiano da primazia da razão prática sobre a razão teórica.
Faz-se necessário esclarecer que o que acabamos de dizer em nada prejulga a salvação dos que não têm a fé cristã. O único que se diz é que também os não cristãos que vivem com retidão segundo a sua consciência se salvam por Cristo e em Cristo, embora nesta terra não o tenham conhecido. Cristo é o Redentor e o Salvador universal do género humano. Ele é a salvação de todos os que se salvam.
3. O relativismo ético-social
Em primeiro lugar, existe hoje uma interpretação relativista da religião. É o que atualmente se conhece como “teologia do pluralismo religioso”. Esta teoria teológica afirma que o pluralismo das religiões não é só uma realidade de fato, mas uma realidade de direito. Deus quereria positivamente as religiões não cristãs como caminhos diversos através dos quais os homens se unissem a Ele e recebessem a salvação, independentemente de Cristo. Cristo tem, no máximo, uma posição de particular importância, mas é só um dos caminhos possíveis e, desde logo, nem exclusivo nem inclusivo dos demais. Todas as religiões seriam vias parciais, todas poderiam aprender das outras algo da verdade sobre Deus, em todas haveria uma verdadeira revelação divina.
Essa posição descansa sobre o pressuposto da essencial relatividade histórica e cultural da ação salvífica de Deus em Jesus Cristo. A ação salvífica universal da divindade se realizaria através de diversas formas limitadas, segundo a diversidade de povos e culturas, sem se identificar plenamente com qualquer delas. A verdade absoluta de Deus não poderia ter uma expressão adequada e suficiente na história e na linguagem humana, sempre limitada e relativa. As ações e as palavras de Cristo estariam submetidas a essa relatividade, pouco mais ou pouco menos que as ações e as palavras das outras grandes figuras religiosas da humanidade. A figura de Cristo não teria um valor absoluto e universal. Nada do que aparece na história poderia ter esse valor [11]. Não nos deteremos agora em explicar os diversos modos em que se tem pretendido justificar esta concepção [12].
Destas complexas teorias ocupou-se a encíclicaRedemptoris Missio [13], de João Paulo II, e a declaraçãoDominus Iesus [14]. É fácil dar-se conta de que tais teorias teológicas dissolvem a cristologia e relativizam a revelação levada a cabo por Cristo, que seria limitada, incompleta e imperfeita [15], e que deixaria um espaço livre para outras revelações independentes e autónomas [16]. Para os que sustentam estas teorias é determinante o imperativo ético do diálogo com os representantes das grandes religiões asiáticas, que não seria possível não se aceitar como ponto de partida que essas religiões têm um valor salvífico autônomo, não derivado e não dirigido a Cristo. Também neste caso o relativismo teórico (dogmático) obedece, em boa parte, a uma motivação de ordem prática (o imperativo do diálogo). Estamos, pois, perante outra versão do conhecido tema kantiano da primazia da razão prática sobre a razão teórica.
Faz-se necessário esclarecer que o que acabamos de dizer em nada prejulga a salvação dos que não têm a fé cristã. O único que se diz é que também os não cristãos que vivem com retidão segundo a sua consciência se salvam por Cristo e em Cristo, embora nesta terra não o tenham conhecido. Cristo é o Redentor e o Salvador universal do género humano. Ele é a salvação de todos os que se salvam.
3. O relativismo ético-social
Passamos a ocupar-nos do relativismo ético-social. Esta expressão significa não só que o relativismo atual tem muitas e evidentes manifestações no âmbito ético-social, mas também – e principalmente – que se apresenta como se estivesse justificado por razões ético-sociais. Isto explica tanto a facilidade com que se difunde quanto a escassa eficácia que têm certos intentos de combatê-lo.
Vejamos como Habermas formula essa justificação ético-social. Na sociedade atual encontramos um pluralismo de projetos de vida e de concepções do bem humano. Este fato nos propõe a seguinte alternativa: ou se renuncia à pretensão clássica de pronunciar juízos de valor sobre as diversas formas de vida que a experiência nos oferece ou, então, se há de renunciar a defender o ideal da tolerância, para o qual cada concepção da vida vale tanto como qualquer outra, ou, pelo menos, tem o mesmo direito a existir [17]. A mesma ideia é expressa de modo mais sintético por um conhecido jurista argentino: «Se a existência de razões para modos de vida não fosse utilizada para justificar o emprego da coação, a tolerância seria compatível com os compromissos mais profundos» [18]. A força deste tipo de raciocínio consiste em que, historicamente, tem ocorrido muitas vezes que nós, os homens, temos sacrificado violentamente a liberdade sobre o altar da verdade. Por isso, com um pouco de habilidade dialética não é difícil fazer passar por defesa da liberdade atitudes e concepções que, na realidade, caem no extremo oposto de sacrificar violentamente a verdade sobre o altar da liberdade.
Isto se vê claramente no modo em que a mentalidade relativista ataca os seus adversários. A quem afirme, por exemplo, que a heterossexualidade pertence à essência do casamento, não se lhe diz que essa tese é falsa, mas se lhe acusa de fundamentalismo religioso, de intolerância ou de espírito anti-moderno. Menos ainda se lhe dirá que a tese contrária é verdadeira, isto é, não se tentará demonstrar que a heterossexualidade nada tem a ver com o casamento. O característico da mentalidade relativista é pensar que esta tese é uma das teses que existe na sociedade juntamente com a sua contrária e, talvez, com outras mais, e que, em definitiva, todas têm igual valor e o mesmo direito a serem socialmente reconhecidas. Ninguém é obrigado a se casar com uma pessoa do mesmo sexo, mas quem quiser fazê-lo deve poder fazê-lo. É o mesmo raciocínio com o qual se justifica a legalização do aborto e de outros atentados contra a vida de seres humanos que, pelo estado em que se encontram, não podem reivindicar ativamente os seus direitos, e cuja colaboração não é necessária a nós. Ninguém é obrigado a abortar, mas quem pensar que deve fazê-lo, deve poder fazê-lo.
Pode-se criticar a mentalidade relativista de muitas formas, conforme as circunstâncias. Mas o que nunca se deve fazer é reforçar, com as próprias palavras ou atitudes, aquilo que nessa mentalidade é mais persuasivo. Isto é: quem ataca o relativismo não pode dar a impressão de que está disposto a sacrificar a liberdade sobre o altar da verdade. Pelo contrário, deve-se demonstrar que se é muito sensível ao fato – de per si, bastante claro – que a passagem da perspectiva teórica à perspectiva ético-política tem de se fazer com muito cuidado. Uma coisa é ser inadmissível que aqueles que afirmam e aqueles que negam o mesmo tenham igualmente razão; outra coisa seria dizer que só os que pensam de um determinado modo podem desfrutar de todos os direitos civis de liberdade no âmbito do Estado. Deve-se evitar qualquer tipo de confusão entre o plano teórico e o plano ético-político: uma coisa é a relação da consciência com a verdade e outra, bem diferente, é a justiça para com as pessoas. Seguindo esta lógica, poder-se-á mostrar depois, de modo crível, que de uma afirmação que pretende dizer como as coisas são, isto é, de uma tese especulativa, só cabe dizer que é verdadeira ou falsa. As teses especulativas não são nem fortes nem débeis, nem privadas nem públicas, nem frias nem quentes, nem violentas nem pacíficas, nem autoritárias nem democráticas, nem progressistas nem conservadoras, nem boas nem más. São simplesmente verdadeiras ou falsas. O que pensaríamos de quem, ao expor uma demonstração matemática ou uma explicação médica, começasse a dizer que esses conhecimentos científicos têm só uma validade privada ou então que constituem uma teoria muito democrática? Se existe completa certeza de que um fármaco permite deter um tumor, trata-se, pura e simplesmente, de uma verdade médica, e não há nada mais a se acrescentar. Porém, é cabível qualificar uma forma de conceber os direitos civis ou a estrutura do Estado de autoritária ou de democrática, de justa ou de injusta, de conservadora ou de reformista. Ao mesmo tempo, é preciso recordar que existem realidades, como o casamento, que são, a uma só vez, objeto de um conhecimento verdadeiro e de uma regulação prática segundo a justiça. Em caso de conflito, é preciso encontrar o modo de salvar tanto a verdade quanto a justiça para com as pessoas, para o qual se há de ter muito em conta – entre outras coisas – o aspecto “expressivo” ou educativo das leis civis [19].
No Discurso de 22 de dezembro de 2005, Bento XVI distinguiu com muita nitidez a relação da consciência com a verdade das relações de justiça entre as pessoas. Transcrevo um parágrafo muito significativo: «se a liberdade religiosa for considerada como expressão da incapacidade do homem para encontrar a verdade e, consequentemente, tornar-se uma canonização do relativismo, então passa impropriamente de necessidade social e histórica para o nível metafísico. Assim, priva-se-lhe do seu verdadeiro sentido, com a consequência de não poder ser aceite por quem crê que o homem é capaz de conhecer a verdade de Deus e, com base na dignidade interior da verdade, está ligado a tal conhecimento.
Uma coisa completamente diversa é, porém, considerar a liberdade de religião como uma necessidade derivante da convivência humana, aliás, como uma consequência intrínseca da verdade que não pode ser imposta do exterior, mas que o homem deve fazer sua mediante um processo do convencimento. O Concílio Vaticano II, com o Decreto sobre a liberdade religiosa, reconhecendo e fazendo seu um princípio essencial do Estado moderno, recuperou novamente o patrimônio mais profundo da Igreja» [20].
Bento XVI dá mostras de um fino discernimento quando reconhece que no Concílio Vaticano II a Igreja fez seu um princípio ético-político do Estado moderno, e que o fez recuperando algo que pertencia à tradição católica. Sua posição está cheia de matizes. E, desse modo, esclarece que «quem pensava que com este “sim” fundamental para a era moderna se dissipassem todas as tensões e a “abertura ao mundo” assim realizada transformasse tudo em pura harmonia, tinha subestimado as tensões internas e também as contradições da mesma era moderna; tinha subestimado a perigosa fragilidade da natureza humana que em todos os períodos da história e em cada constelação histórica é uma ameaça para o caminho do homem». E se afirma que «não podia ser intenção do Concílio abolir esta contradição do Evangelho em relação aos perigos e aos erros do homem», diz também que é um bem fazer todo o possível por evitar as «contradições erróneas ou supérfluas, para apresentar a este nosso mundo a exigência do Evangelho em toda a sua grandeza e pureza» [22]. E, assinalando o fundo do problema, acrescenta que «[o] passo dado pelo Concílio em direção à era moderna, que de modo tão impreciso foi apresentado como “abertura ao mundo” pertence definitivamente ao perene problema da relação entre fé e razão, que se apresenta sempre de novas formas» [23].
O raciocínio de Bento XVI mostra um modo de fazer frente de modo justo e matizado a uma posição tremendamente insidiosa como é a do relativismo ético-social.
4. Os problemas antropológicos do relativismo
Vejamos como Habermas formula essa justificação ético-social. Na sociedade atual encontramos um pluralismo de projetos de vida e de concepções do bem humano. Este fato nos propõe a seguinte alternativa: ou se renuncia à pretensão clássica de pronunciar juízos de valor sobre as diversas formas de vida que a experiência nos oferece ou, então, se há de renunciar a defender o ideal da tolerância, para o qual cada concepção da vida vale tanto como qualquer outra, ou, pelo menos, tem o mesmo direito a existir [17]. A mesma ideia é expressa de modo mais sintético por um conhecido jurista argentino: «Se a existência de razões para modos de vida não fosse utilizada para justificar o emprego da coação, a tolerância seria compatível com os compromissos mais profundos» [18]. A força deste tipo de raciocínio consiste em que, historicamente, tem ocorrido muitas vezes que nós, os homens, temos sacrificado violentamente a liberdade sobre o altar da verdade. Por isso, com um pouco de habilidade dialética não é difícil fazer passar por defesa da liberdade atitudes e concepções que, na realidade, caem no extremo oposto de sacrificar violentamente a verdade sobre o altar da liberdade.
Isto se vê claramente no modo em que a mentalidade relativista ataca os seus adversários. A quem afirme, por exemplo, que a heterossexualidade pertence à essência do casamento, não se lhe diz que essa tese é falsa, mas se lhe acusa de fundamentalismo religioso, de intolerância ou de espírito anti-moderno. Menos ainda se lhe dirá que a tese contrária é verdadeira, isto é, não se tentará demonstrar que a heterossexualidade nada tem a ver com o casamento. O característico da mentalidade relativista é pensar que esta tese é uma das teses que existe na sociedade juntamente com a sua contrária e, talvez, com outras mais, e que, em definitiva, todas têm igual valor e o mesmo direito a serem socialmente reconhecidas. Ninguém é obrigado a se casar com uma pessoa do mesmo sexo, mas quem quiser fazê-lo deve poder fazê-lo. É o mesmo raciocínio com o qual se justifica a legalização do aborto e de outros atentados contra a vida de seres humanos que, pelo estado em que se encontram, não podem reivindicar ativamente os seus direitos, e cuja colaboração não é necessária a nós. Ninguém é obrigado a abortar, mas quem pensar que deve fazê-lo, deve poder fazê-lo.
Pode-se criticar a mentalidade relativista de muitas formas, conforme as circunstâncias. Mas o que nunca se deve fazer é reforçar, com as próprias palavras ou atitudes, aquilo que nessa mentalidade é mais persuasivo. Isto é: quem ataca o relativismo não pode dar a impressão de que está disposto a sacrificar a liberdade sobre o altar da verdade. Pelo contrário, deve-se demonstrar que se é muito sensível ao fato – de per si, bastante claro – que a passagem da perspectiva teórica à perspectiva ético-política tem de se fazer com muito cuidado. Uma coisa é ser inadmissível que aqueles que afirmam e aqueles que negam o mesmo tenham igualmente razão; outra coisa seria dizer que só os que pensam de um determinado modo podem desfrutar de todos os direitos civis de liberdade no âmbito do Estado. Deve-se evitar qualquer tipo de confusão entre o plano teórico e o plano ético-político: uma coisa é a relação da consciência com a verdade e outra, bem diferente, é a justiça para com as pessoas. Seguindo esta lógica, poder-se-á mostrar depois, de modo crível, que de uma afirmação que pretende dizer como as coisas são, isto é, de uma tese especulativa, só cabe dizer que é verdadeira ou falsa. As teses especulativas não são nem fortes nem débeis, nem privadas nem públicas, nem frias nem quentes, nem violentas nem pacíficas, nem autoritárias nem democráticas, nem progressistas nem conservadoras, nem boas nem más. São simplesmente verdadeiras ou falsas. O que pensaríamos de quem, ao expor uma demonstração matemática ou uma explicação médica, começasse a dizer que esses conhecimentos científicos têm só uma validade privada ou então que constituem uma teoria muito democrática? Se existe completa certeza de que um fármaco permite deter um tumor, trata-se, pura e simplesmente, de uma verdade médica, e não há nada mais a se acrescentar. Porém, é cabível qualificar uma forma de conceber os direitos civis ou a estrutura do Estado de autoritária ou de democrática, de justa ou de injusta, de conservadora ou de reformista. Ao mesmo tempo, é preciso recordar que existem realidades, como o casamento, que são, a uma só vez, objeto de um conhecimento verdadeiro e de uma regulação prática segundo a justiça. Em caso de conflito, é preciso encontrar o modo de salvar tanto a verdade quanto a justiça para com as pessoas, para o qual se há de ter muito em conta – entre outras coisas – o aspecto “expressivo” ou educativo das leis civis [19].
No Discurso de 22 de dezembro de 2005, Bento XVI distinguiu com muita nitidez a relação da consciência com a verdade das relações de justiça entre as pessoas. Transcrevo um parágrafo muito significativo: «se a liberdade religiosa for considerada como expressão da incapacidade do homem para encontrar a verdade e, consequentemente, tornar-se uma canonização do relativismo, então passa impropriamente de necessidade social e histórica para o nível metafísico. Assim, priva-se-lhe do seu verdadeiro sentido, com a consequência de não poder ser aceite por quem crê que o homem é capaz de conhecer a verdade de Deus e, com base na dignidade interior da verdade, está ligado a tal conhecimento.
Uma coisa completamente diversa é, porém, considerar a liberdade de religião como uma necessidade derivante da convivência humana, aliás, como uma consequência intrínseca da verdade que não pode ser imposta do exterior, mas que o homem deve fazer sua mediante um processo do convencimento. O Concílio Vaticano II, com o Decreto sobre a liberdade religiosa, reconhecendo e fazendo seu um princípio essencial do Estado moderno, recuperou novamente o patrimônio mais profundo da Igreja» [20].
Bento XVI dá mostras de um fino discernimento quando reconhece que no Concílio Vaticano II a Igreja fez seu um princípio ético-político do Estado moderno, e que o fez recuperando algo que pertencia à tradição católica. Sua posição está cheia de matizes. E, desse modo, esclarece que «quem pensava que com este “sim” fundamental para a era moderna se dissipassem todas as tensões e a “abertura ao mundo” assim realizada transformasse tudo em pura harmonia, tinha subestimado as tensões internas e também as contradições da mesma era moderna; tinha subestimado a perigosa fragilidade da natureza humana que em todos os períodos da história e em cada constelação histórica é uma ameaça para o caminho do homem». E se afirma que «não podia ser intenção do Concílio abolir esta contradição do Evangelho em relação aos perigos e aos erros do homem», diz também que é um bem fazer todo o possível por evitar as «contradições erróneas ou supérfluas, para apresentar a este nosso mundo a exigência do Evangelho em toda a sua grandeza e pureza» [22]. E, assinalando o fundo do problema, acrescenta que «[o] passo dado pelo Concílio em direção à era moderna, que de modo tão impreciso foi apresentado como “abertura ao mundo” pertence definitivamente ao perene problema da relação entre fé e razão, que se apresenta sempre de novas formas» [23].
O raciocínio de Bento XVI mostra um modo de fazer frente de modo justo e matizado a uma posição tremendamente insidiosa como é a do relativismo ético-social.
4. Os problemas antropológicos do relativismo
Dissemos que o relativismo no campo ético-social se apoia numa motivação de ordem prática: quer permitir fazer algo a quem o deseja, sem produzir dano aos demais, e isto seria uma ampliação da liberdade. Mas o valor dessa motivação é só aparente. A mentalidade relativista comporta uma profunda desordem antropológica, que tem custos pessoais e sociais muito altos. A natureza desta desordem antropológica é bastante complexa e altamente problemática. Aqui vou mencionar só dois problemas.
O primeiro é que a mentalidade medieval está unida a uma excessiva acentuação da dimensão técnica da inteligência humana e dos impulsos ligados à expansão do eu com os quais essa dimensão da inteligência está relacionada, o que leva consigo a depressão da dimensão sapiencial da inteligência e, por conseguinte, das tendências transitivas e transcendentes da pessoa, com as quais esta segunda dimensão da inteligência está aparentada.
O que aqui se chama dimensão técnica da inteligência humana e que outros autores chamam por outros nomes [24] é a evidente e necessária atividade da inteligência que nos permite orientar-nos no meio ambiente, garantindo a subsistência e a satisfação das necessidades básicas. Cunha conceitos, capta relações, conhece a ordem das coisas etc. com a finalidade de dominar e de explorar a natureza, fabricar os instrumentos e obter os recursos que necessitamos. Graças a esta função da inteligência, as coisas e as forças da natureza tornam-se objetos domináveis e manipuláveis para o nosso proveito. Deste ponto de vista, conhecer é poder: poder dominar, poder manipular, poder viver melhor.
A função sapiencial da inteligência visa, pelo contrário, a entender o significado do mundo e o sentido da vida humana. Cunha conceitos não com a finalidade de dominar, mas de alcançar as verdades e as concepções do mundo que possam dar resposta satisfatória à pergunta pelo sentido de nossa existência, resposta que, em longo prazo, nos resulta tão necessária como o pão e a água.
A sistemática fuga ou evasão do plano da verdade, que estamos chamando mentalidade relativista, comporta um desequilíbrio destas duas funções da inteligência e das tendências que a ela estão ligadas. O predomínio da função técnica significa o predomínio, em nível pessoal e cultural, dos impulsos voltados aos valores vitais (o prazer, o bem estar, a ausência de sacrifício e de esforço), através dos quais se afirma e se expande o eu individual. A depressão da função sapiencial da inteligência comporta a inibição das tendências transitivas, isto é, das tendências sociais e altruístas e, sobretudo, uma diminuição da capacidade de auto-transcendência, em razão do que a pessoa fica encerrada nos limites do individualismo egoísta. Em termos mais simples: o afã ansioso de ter, de triunfar, de subir, de descansar e de se divertir, de levar uma vida fácil e prazenteira, prevalece com sobras sobre o desejo de saber, de refletir, de dar um sentido ao que se faz, de ajudar os demais com o próprio trabalho, de transcender o reduzido âmbito dos nossos interesses vitais imediatos. Fica quase bloqueada a transcendência horizontal (voltada aos demais e à coletividade) e também a vertical (voltada aos valores ideais absolutos, voltada a Deus).
O segundo problema está estreitamente vinculado ao primeiro. A falta de sensibilidade para com a verdade e para com as questões relativas ao sentido do viver leva consigo a deformação – quando não a corrupção – da ideia e da experiência da liberdade; da própria liberdade, em primeiro lugar. Não pode estranhar que a consolidação social e legal dos modos de vida congruentes com a desordem antropológica de que estamos falando se fundamentem sempre invocando a liberdade, realidade certamente sacrossanta, mas que é preciso entender em seu verdadeiro sentido. Invoca-se a liberdade como liberdade de abortar, liberdade de ignorar, liberdade de não saber falar senão com palavras soezes, liberdade de não dever dar razão das próprias convicções, liberdade de incomodar e, antes de tudo e sobretudo, liberdade de impor aos demais uma filosofia relativista, que todos teríamos que aplaudir como filosofia da liberdade. Quem lhe negar o aplauso será submetido a um processo de linchamento social e cultural muito difícil de aguentar. Penso que estas considerações podem ajudar a entender em que sentido Bento XVI tem falado de “ditadura do relativismo”.
Tudo isto também tem muito a ver, negativamente, com a fé cristã. Quem pensa que existe uma verdade e que essa verdade pode ser alcançada com certeza mesmo em meio de muitas dificuldades, quem pensa que nem tudo pode ser de outra maneira, isto é, quem pensa que a nossa capacidade de modelar culturalmente o amor, o casamento, a geração, a ordenação da convivência no Estado etc. tem limites que não se podem superar, pensa, em definitiva, que existe uma inteligência mais alta do que a humana. É a inteligência do Criador, que determina o que as coisas são e os limites do nosso poder de transformá-las. O relativista pensa o contrário. O relativismo parece um agnosticismo. Quem o puder pensar até o final verá muito mais afim o ateísmo prático. Não me parece compatível a convicção de que Deus criou o homem e a mulher com a ideia de que pode existir um casamento entre pessoas do mesmo sexo. Isto só será possível se o casamento fosse simplesmente uma criação cultural: nós o estruturamos, há séculos, de um modo, e agora somos livres para estruturá-lo de outro modo.
O relativismo responde a uma concepção profunda da vida que trata de impor. O relativista pensa que o modo de alcançar a maior felicidade possível de se conseguir neste pobre mundo nosso – que sempre é uma felicidade fragmentada e limitada – é evadir o problema da verdade, que seria uma complicação inútil e nociva, causa de tantas quebra-cabeças. Mas esta concepção se encontra com o problema de que os homens, além de desejarem ser felizes, de quererem gozar, de aspirarem a carecer de vínculos para se moverem à vontade, têm também uma inteligência e desejam conhecer o sentido do seu viver. Aristóteles iniciou a sua Metafísica dizendo que todo homem, por natureza, deseja saber [25]. E Cristo acrescentou que «não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus» [26].
O desejo de saber e a fome da palavra que procede da boca de Deus são inextinguíveis, e nenhum aparato comunicativo ou coercitivo poderá fazê-los desaparecer da vida humana. Por isso, estou convencido de que a hora atual é uma hora cheia de esperança e de que o futuro é muito mais promissor do que parece. Com as presentes reflexões, que não querem ser negativas, só se pretendeu expor com seriedade e realismo o aspecto da presente conjuntura que Bento XVI tem chamado relativismo, bem como a sua incidência na prática e na difusão da fé cristã no mundo atual.
Ángel Rodríguez Luño, Doutor em Filosofia e Educação, e professor de Teologia Moral da Pontificia Università della Santa Croce (Roma)
Notas
[1] Aqui teremos em conta os seguintes textos: Ratzinger, J.Fede, verità, tolleranza.
Il Cristianesimo e le religioni del mondo. Siena : Cantagalli, 2003 (trad. espanhola: Fe, verdad y tolerância. Salamanca : Ed. Sígueme, 2005); a homilia da “Missa pro eligendo Romano Pontifice”, celebrada na basílica vaticana em 18 de abril de 2005 e o importantíssimo Discurso de Bento XVI à Cúria Romana por ocasião do Natal, de 22 de dezembro de 2005.
[2] Cf., por exemplo, Ratzinger, J. Fede, verità, tolleranza. Il Cristianesimo e le religioni del mondo, cit., p. 121. Veja-se também a homilia anteriormente mencionada de 18 de abril de 2005.
[3] Cf. Ratzinger, J. Fede, verità, tolleranza…, cit. pp. 170 ss.
[4] Cf. ibid., pp. 170-192.
[5] Dizemos que o conhecimento de Deus que nos dá a fé não é exaustivo porque no Céu conheceremos a Deus muitíssimo melhor. No entanto, o que nos diz a Revelação é verdadeiro, e é tudo o que Deus quis dar-nos a conhecer de Si mesmo. Não há outra fonte para conhecer mais verdades acerca de Deus. Não há outras revelações.
[6] Hb 1, 3.
[7] Cf 1 Tm 2, 5.
[8] Esta é a tese defendida em princípios do século XX por E. Troeltsch. Cf. L’assoluteza del cristianesimo e la storia delle religioni. Napoli : Morano, 1968.
[9] Esta é uma idéia muito presente ao longo do livro anteriormente citado Fede, verità e tolleranza….
[10] Cf. Ratzinger, J. Fede, verità e tolleranza…, cit., p. 192.
[11] Uma exposição e uma defesa da tese pluralista pode se encontrar em: Knitter, P. No Other Name? A Critical Survey of Christian Attitudes towards the World Religions. Maryknoll (NY) : Orbis Books, 1985; Hick, J. An Interpretation of Religion. Human Responses to Transcendent. London : Yale University Press, 1989; Amaladoss, M. “The pluralism of Religions and the Significance of Christ”, In: Idem. Making All Things New: Dialogue, Pluralism and Evangelization in Asia. Anand : Gujarat Sahistya Prakash, 1990, pp. 243-268; Idem. “Mission and Servanthood” In: Third Millenium 2 (1999), pp. 59-66; Idem. “Jésus Christ, le seul sauveur, et la mission” In:Spiritus 159 (2000), pp. 148-157; Idem, “‘Do not judge…’ (Mt 7:1)” In: Jeevadhara 31/183 (2001), pp. 179-182; Wilfred, F. Beyond Settled Foundations. Madras : The Journey of Indian Theology, 1993.
[12] Uns afirmam que o Verbo não encarnado, Logos ásarkos ou Logos cósmico, desenvolve uma ação salvífica muito mais ampla que a do Verbo Encarnado, isto é, que a do Logos énsarkos (cf., por exemplo, Dupuis, J. Verso una teologia del pluralismo religioso. Brescia : Queriniana, 1997, p. 404). Porém, outros dizem que é o Espírito Santo que desenvolve uma ação salvífica separada e independente da de Cristo, e fundamentam no Espírito Santo o valor salvífico autônomo das religiões não cristãs e a verdadeira revelação contida nelas.
[13] Cf. João Paulo II. Carta Encíclica Redemptoris Missiosobre a permanente validade do mandato missionário, 07-XII-1990.
[14] Cf. Congregação para a Doutrina da Fé. DeclaraçãoDominus Iesus sobre a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, 06-VIII-2000.
[15] Cf. Dupuis, J. Verso una teologia del pluralismo religioso, cit., pp. 367 e 403.
[16] Cf. ibid., pp. 332 e 342.
[17] Cf. Habermas, J. Teoria della morale. Bari-Roma : Laterza, 1995, p. 88 (original: Erläuterungen zur Diskursrthik, Frankfurt am Main : Suhrkamp, 1991).
[18] Nino, C. S. Ética y derechos humanos. Un ensayo de fundamentación. Barcelona : Ariel, 1989, p. 195.
[19] Chama-se aspecto “expressivo” das leis civis o fato inegável de que as leis, além de permitir ou de proibir algo, expressam uma concepção do homem, da vida, do casamento e, desse modo, têm um efeito educativo de sinal positivo ou negativo.
[20] Bento XVI. Discurso à Cúria Romana por ocasião do Natal, 22-XII-2005.
[21] Ibidem.
[22] Ibidem.
[23] Ibidem.
[24] Philipp Lersch a chama função intelectual e denomina função espiritual da inteligência a que nós chamamos função sapiencial. Cf. Lersch, Ph. La estrutuctura de la personalidad, 4ª ed. Barcelona : Scientia, 1963, pp. 399-404.
[25] Cf. Aristóteles. Metafísica, I, 1: 980 a 1.
[26] Mt 4, 4
(Fonte: site do Opus Dei – Brasil AQUI)
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