PERDOAR E DESCULPAR – Perdoar e esquecer as pequenas ofensas que às vezes se produzem na convivência diária. – O nosso perdão em comparação com o do Senhor. – Desculpar e compreender. Aprender a ver as coisas boas dos outros.
I. NO TRATO com os outros, no meio do trabalho, nas relações sociais, na convivência de todos os dias, é praticamente inevitável que se produzam atritos. É também possível que alguém nos ofenda ou se porte connosco de uma maneira pouco leal, que nos prejudica. E isto, talvez de forma habitual. Devo perdoar até sete vezes? Quer dizer, devo perdoar sempre? Esta é a questão que Pedro propõe ao Senhor no Evangelho da Missa de hoje1. É também o tema da nossa oração. Conhecemos a resposta do Senhor a Pedro e a nós: Não digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete. Quer dizer, sempre. O Senhor pede aos que o seguem, a ti e a mim, uma disposição ilimitada de perdoar e desculpar. Quer que o imitemos. “A omnipotência de Deus – diz São Tomás – manifesta-se sobretudo em perdoar e usar de misericórdia, porque a maneira que Deus tem de demonstrar o seu poder supremo é perdoar livremente”2; é por isso que “nada nos assemelha tanto a Deus como estarmos sempre dispostos a perdoar”3. E é aqui que mostramos também a nossa maior grandeza de alma. “Longe da nossa conduta, portanto, a lembrança das ofensas que nos tenham feito, das humilhações que tenhamos padecido – por muito injustas, descorteses e rudes que tenham sido –, porque é impróprio de um filho de Deus ter preparado um registo para apresentar uma lista de agravos”4. Ainda que o próximo não se corrija, ainda que recaia constantemente na mesma ofensa ou em coisas que me magoam, devo renunciar a todo o rancor. O meu interior deve conservar-se são e limpo do menor assomo de inimizade. O nosso perdão deve ser sincero, de coração, à semelhança do perdão de Deus, conforme dizemos todos os dias no Pai-Nosso: Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Perdão rápido, sem deixar que o rancor ou a separação corroam o coração nem por um momento; sem humilhar a outra parte, sem assumir ares teatrais nem dramatizar. A maior parte das vezes, na convivência habitual, nem sequer será necessário dizer: “Eu te perdoo”; bastará sorrir, voltar naturalmente à conversa, ter um detalhe amável; em suma, desculpar. Não é necessário que soframos grandes injúrias para nos exercitarmos nestas manifestações de caridade. São suficientes esses pequenos incidentes que acontecem todos os dias: discussões no lar por questões de pouca importância, respostas grosseiras ou gestos desabridos ocasionados muitas vezes pelo cansaço das pessoas e que acontecem no trabalho, no trânsito das grandes cidades, nos meios de transporte colectivo... Viveríamos mal a nossa vida de cristãos se, ao menor atrito, a nossa caridade esfriasse e nos distanciássemos dos outros ou ficássemos de mau-humor. Ou se uma injúria grave nos fizesse esquecer a presença de Deus e a nossa alma perdesse a paz e a alegria. Ou se fôssemos susceptíveis. Devemos examinar-nos para ver como são as nossas reacções ante os pequenos aborrecimentos que, às vezes, se produzem na convivência diária. Seguir o Senhor de perto é encontrar também neste ponto, tanto nas pequenas contrariedades como nas ofensas graves, um caminho de santidade. II. SE PECAR SETE VEZES no dia contra ti..., sete vezes lhe perdoarás5.Sete vezes, isto é, muitas vezes. Até no mesmo dia e na mesma coisa. A caridade é paciente, não se irrita6. Vez por outra, o perdão pode custar-nos. Em coisas grandes ou em coisas pequenas. O Senhor sabe disso e anima-nos a recorrer a Ele. E, quando o fazemos, explica-nos como este perdão sem limite, compatível com a defesa justa sempre que necessário, tem a sua origem na humildade; e lembra-nos a parábola narrada pelo Evangelho da Missa de hoje: Um rei quis ajustar contas com os seus servos. E trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos7. Uma quantia enorme! Uns sessenta milhões de denários (um denário era o salário de um dia de um trabalhador do campo). Quando uma pessoa é sincera consigo própria e com Deus, não é difícil que se reconheça na posição desse servo que não tinha com que pagar. Não somente porque deve a Deus tudo o que é e tem, mas porque são muitas as ofensas que lhe foram perdoadas. Só lhe resta uma saída: recorrer à misericórdia de Deus, para que faça com ele o que fez com aquele servo: Cheio de compaixão, o senhor deixou-o ir-se embora e perdoou-lhe a dívida. Mas quando este servo encontrou um dos seus companheiros que lhe devia cem denários, não lhe soube perdoar nem esperar que estivesse em condições de pagar-lhe, apesar de o companheiro lhe ter pedido que se apiedasse dele. Então o senhor chamou-o e disse-lhe: Servo mau, eu te perdoei toda a dívida porque me suplicaste. Não devias também tu compadecer-te do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti? A humildade de reconhecermos as nossas inúmeras dívidas para com Deus ajuda-nos a perdoar e a desculpar os outros. Se tivermos em conta tudo o que o Senhor nos perdoou, perceberemos que aquilo que devemos perdoar aos outros – mesmo nos casos mais graves – é pouco: não chega a cem denários. Comparados com sessenta milhões, são nada. A nossa atitude ante os pequenos agravos deve ser a de não lhes dar muita importância (na realidade, na maioria das vezes, não a têm) e desculpá-los com elegância humana. Quando perdoamos e esquecemos, somos nós que mais lucramos. A nossa vida torna-se mais alegre e serena, e não sofremos por ninharias. “Verdadeiramente a vida – que já de per si é estreita e insegura – às vezes se torna difícil. – Mas isso contribuirá para fazer-te mais sobrenatural, para te fazer ver a mão de Deus: e assim serás mais humano e compreensivo com os que te rodeiam”8. “Temos que compreender a todos, temos que conviver com todos, temos que desculpar a todos, temos que perdoar a todos. Não diremos que o injusto é justo, que a ofensa a Deus não é ofensa a Deus, que o mau é bom. No entanto, perante o mal, não responderemos com outro mal, mas com a doutrina clara e com a acção boa: afogando o mal em abundância de bem (cfr. Rom XII, 21)”9. Não cometeremos o erro daquele servo mesquinho que, tendo-lhe sido perdoado tanto, não foi capaz de perdoar tão pouco. III. A CARIDADE dilata o coração para que caibam nele todos os homens, mesmo aqueles que não nos compreendem ou não correspondem ao nosso amor. Ao lado do Senhor, não nos sentiremos inimigos de ninguém. A seu lado, aprenderemos a não julgar as intenções íntimas das pessoas. Das intenções dos outros, não captamos senão umas poucas manifestações externas, que muitas vezes ocultam os verdadeiros motivos da sua conduta. “Ainda que vejais algo de errado, não julgueis imediatamente o vosso próximo – aconselha São Bernardo –, mas desculpai-o no vosso interior. Desculpai a intenção, se não puderdes desculpar a acção. Pensai que terá sido levado a ela por ignorância, por surpresa ou por fragilidade. Se a coisa for tão clara que não vos seja possível dissimulá-la, ainda assim procurai crer desse modo e dizei no vosso interior: a tentação deve ter sido muito forte”10. Quantos erros cometemos nos pequenos atritos da convivência diária! Muitos deles se devem a que nos deixamos levar por juízos e suspeitas temerárias. Quantas tensões familiares se converteriam em atenções, se compreendêssemos que esse pormenor indelicado ou esse gesto inoportuno se deveu ao cansaço daquela pessoa depois de um dia longo e difícil! Além disso, “enquanto interpretares com má-fé as intenções alheias, não terás o direito de exigir compreensão para ti mesmo”11. A compreensão inclina-nos a viver amavelmente abertos aos outros, a olhá-los com simpatia; alcança as profundezas do coração e sabe encontrar a parte de bondade que há sempre em todas as pessoas. Só é capaz de compreender quem é humilde. Caso contrário, até as menores faltas dos outros se vêem aumentadas, ao mesmo tempo que se tende a diminuir e justificar as maiores faltas e erros pessoais. A soberba assemelha-se a esses espelhos curvos que deformam a verdadeira realidade das coisas. Quem é humilde é objectivo; e então desculpa com facilidade os defeitos alheios. O humilde não se escandaliza. “Não há pecado nem crime cometido por outro homem – escreve Santo Agostinho – que eu não seja capaz de cometer pela minha fragilidade; e, se ainda não o cometi, é porque Deus, na sua misericórdia, não o permitiu e me preservou no bem”12. Além disso, sendo humildes, “aprenderemos também a descobrir muitas virtudes naqueles que nos rodeiam – dão-nos lições de trabalho, de abnegação, de alegria... –, e não nos deteremos demasiado nos seus defeitos, a não ser quando for imprescindível para os ajudarmos com a correcção fraterna”13. Se assim o pedirmos à Virgem, Ela nos ensinará a saber desculpar – em Caná, Nossa Senhora não critica a falta de vinho, mas ajuda a resolvê-la –, como nos ensinará também a lutar por adquirir essas mesmas virtudes que, por vezes, nos pode parecer que faltam aos outros. Então estaremos em excelentes condições de poder prestar a todos a nossa ajuda. (1) Mt 18, 21-35; (2) São Tomás, Suma Teológica, 1, q. 25, a. 3, ad. 3; (3) São João Crisóstomo, Homilia sobre São Mateus, 30, 5; (4) São Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 309; (5) cfr. Lc 17, 4; (6) 1 Cor 13, 7; (7) cfr. Mt 18, 24 e segs.; (8) São Josemaría Escrivá, Sulco, n. 762; (9) São Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 182; (10) São Bernardo, Sermão 40 sobre o Cântico dos Cânticos; (11) São Josemaría Escrivá, Sulco, n. 635; (12) Santo Agostinho, Confissões, 2, 7; (13) São Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 20.
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