O bem existe e é mais forte que o mal. Só que nem sempre é fácil vê-lo
Vai nascer. Para mim é o filho de Deus feito Homem, pelo mistério da Encarnação, salvífico e redentor. Traz consigo a esperança ao cativo, lança fora todo o calçado cansado da guerra, liberta o oprimido e estabelece a promessa da nova aliança com uma humanidade igual perante Deus, sem escravo nem senhor. Mas mesmo para quem não comungue desta fé, o natal assinala o nascimento de um homem que ao longo dos seus trinta e três anos de vida marcou, para sempre, a história da Humanidade. Um pacifista subversivo que desafiou os poderes instituídos, denunciou os hipócritas e acolheu os humildes e os excluídos. Em qualquer caso, permanece actualíssima essa exortação do amor partilhado e compassivo, da fraternidade universal e do desejo do triunfo da paz verdadeira no coração de uma humanidade atormentada. Em qualquer caso, o Natal é, sobretudo, isto.
Não se percebe, pois, como assistimos, todos nós, ao modo como o espírito do Natal é aprisionado num monte de plástico vermelho, ano após ano, submetido a ditatoriais comandos consumistas, o seu significado mais profundo diluído em práticas sociais tão cansativas como efémeras, SMS truncados, presentes que já perderam destino e afecto, adquiridos em série, encontros condicionados por uma excessiva logística festiva, ruído e agitação sem trégua ao necessário silêncio que deve preceder as grandes revelações.
Lembro os Natais da minha infância, os Natais de sempre, um tempo em que a minha avó fazia questão de passar os pobres à frente dos ricos, de contar o número de cabazes e sacos necessários para fazer chegar uma pequena ceia à mesa de cada uma dessas famílias que, de outro modo, não veriam nem o bacalhau e o azeite nem as broas e o açúcar. Mas o que hoje, à distância, me parece mais extraordinário, é o facto de ser a minha avó que, com as suas mãos e a sua alegria, compunha esses cestos e sacos, conhecendo intimamente cada agregado familiar, o nome próprio de todos eles, a dureza de cada carência, a incerteza de cada destino, a dor de cada humilhação. A prioridade para ela, sobretudo nessa quadra, não era dar de comer a quem não tinha fome, nem dar mais supérfulo a quem nunca disputara com a sorte o essencial. Por isso, num advento sem dúvidas quanto à natureza do Mistério que nos era oferecido, ela construía um Natal impressivo e doce, afectuoso e comunitário, portas abertas ao mundo exterior. Porque ela sabia que era entre os mais humildes que estavam aqueles que veriam, em primeiro lugar, a estrela e o caminho.
Entre a tentação de evocações nostálgicas e resistir à onda grosseiramente materialista de novas interpretações desta efeméride, tão mais patéticas quanto sabemos que são já muitos aqueles a quem tudo falta, dei comigo a ver Babel, um filme magnífico que, inesperadamente, reconciliou em mim, memórias e novos tempos.
Em três geografias distintas, pessoas de raças, religiões e culturas diversas, assumem para si, na confusão do mundo, o melhor da condição humana, algo universal e perene, que tem a ver com a dimensão redentora e salvífica que a Encarnação encerra, comum a todos os homens de boa vontade, tornados iguais aos olhos de Deus. O polícia japonês, a velha marroquina e a mulher mexicana são movidos, cada um na sua circunstância e latitude, por um sentimento de pura compaixão face ao outro, e nesse sentimento se sublimam em gestos simples: o polícia quando cobre, com o seu casaco, a humilhante nudez da adolescente num apartamento no centro de Tóquio; a velha marroquina quando prepara, silenciosamente, a erva que aliviará as dores da americana ferida e lhe afaga a testa na obscuridade de um casebre miserável; a mulher mexicana quando arrisca tudo o que tem para salvar duas crianças loiras nas áridas terras fronteiriças com os Estados Unidos. O bem existe e é mais forte que o mal. Só que nem sempre é fácil vê-lo.
Maria José Nogueira Pinto
(Fonte: DN online)
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