1. Em virtude daquela loucura infinita que só o Amor e a Misericórdia que Deus é podem explicar fui Ordenado sacerdote no dia de Santa Maria Goretti, 6 de Julho de 1986. Não foi por acaso que na pagela que fiz distribuir, segundo um costume antigo, citei o Salmo 115 (116): “Como agradecerei ao Senhor tudo quanto fez por mim? Elevarei o cálice da salvação, invocando o nome do Senhor”. Totalmente incapaz de retribuir em gratidão os milagres que Ele operou em mim só podia incorporar-me naquela acção de graças que é o Sacrifício Eucarístico de modo que agindo na Pessoa do próprio Jesus Cristo fosse Ele mesmo a minha Gratidão, só assim condigna. O Cálice da Salvação é o Sangue de Cristo Ressuscitado e Glorioso, que Se torna presente quando na consagração o sacerdote diz: “Tomai, todos, e bebei: este é o cálice do Meu Sangue …”. Daí quem em grande parte a minha resposta à vocação (ao chamamento) sacerdotal, a que nunca me teria atrevido se não fora por uma atitude de Fé na orientação do meu director espiritual, fosse motivada ou marcada por esta gratidão e pela vontade de proporcionar a todos os que viesse a encontrar e que estivessem longe de Jesus Cristo a mesma experiência de Redenção que me tinha sido concedida, sem mérito nenhum da minha parte.
No seguinte mês de Outubro fui enviado para o nosso convento em Coimbra. A comunidade era constituída pelo P. Mário Branco, famosíssimo pregador, poeta, tio do cantor José Mário Branco, o P. Veiga Araújo, confessor de nomeada, exímio no acompanhamento espiritual, o P. Ilídio de Sousa Ribeiro, Doutor em filosofia e escritor, o P. Carlos Barbosa, Doutor em Teologia Dogmática, antigo reitor do colégio dos órfãos, o Frei Andrade Café, seminarista, notável pelo seu espírito de serviço e o Frei Joaquim, um santo.
O frei Joaquim era um irmão de 80 anos que se destacava por passar despercebido. Dormia, comia, trabalhava muito e rezava imenso. Quando tinha algum tempo livre dedicava-o sempre a visitar os presos e os doentes, levando-lhes palavras de conforto, de consolação, de esperança, ensinando-lhes com simplicidade a confiança em Deus, a devoção à Virgem Santíssima, o amor à Igreja.
A sua mansidão, suavidade e humildade eram verdadeiramente singulares. A consciência que tinha da transcendência do “Altíssimo, Omnipotente e Bom Senhor” era profundíssima e por isso passava longos tempos completamente prostrado diante do Sacrário. E essa distância imensa a que se punha da Divindade, esse nulificar-se, essa percepção de ser mendigo do Ser, ocasionava uma radical proximidade de Jesus Cristo, que derramava na sua alma sobreabundantes tesouros da Sua graça.
Viver com um santo, ao contrário do que se possa pensar, nem sempre é fácil, podendo mesmo ser árduo. E a razão é simples. A sua vida é uma luz que continuamente descobre os nossos erros, defeitos e pecados. Não é que ele no-los aponte, só que na presença da sua luminosidade torna-se patente aquilo que antes não víamos. E a descoberta dos nossos monstros interiores, para usar uma expressão de Jean Vanier, é, pelos menos ao princípio, assustadora. Claro que acaba por ser sempre proveitoso, porque nos “obriga” a uma conversão contínua, a uma humildade crescente. Mesmo o processo de aceitação da perfeição do outro tem as suas etapas dificultosas, uma vez que o nosso pecado para se esconder aos nossos olhos, procura encontrar no outro imperfeições ou defeitos com que se irritar. Mas a singeleza e a inocência terminam por triunfar forçando-nos à rendição.
2. Quando cheguei a Coimbra eu ainda não conhecia este varão de grandes virtudes a não ser de um ou outro encontro ocasional, quando ele nas férias vinha a Lisboa para as passar cuidando de prisioneiros e enfermos e deter-se em adoração diante de Jesus sacramentado. Não fazia pois ideia do que me esperava. Mas foi logo na primeira Missa, em dia de semana, pelas 19h e 30m, que celebrei na nossa Igrejinha na Av. Dias da Silva que Deus humanado me advertiu, através dele.
Chegada a hora da Comunhão, como tivesse consagrado uma única partícula, dirigi-me ao Sacrário e retirei a única Píxide que lá havia para distribuir o Pão da vida à assembleia que participava no Santo Sacrifício, no Banquete Sagrado. Colocada em cima do altar para retirar a tampa, senti uma resistência. Tornei, com mais força, a tentar destampar; em vão. Repeti; nada. Insisti; impossível. As pessoas esgazeadas esperavam silenciosas na fila para a Comunhão. Atrapalhado, envergonhado, corado, divisei entre o povo um senhor espadaúdo e alentado, de idade madura e comportamento devoto. O frei Joaquim, como era seu costume, entoava cânticos do ambão e enlevado como estava de nada se apercebia. Com um olhar implorante fiz um trejeito ao senhor corpulento que logo entendeu o meu pedido. Com passo decidido e firme, embora solene, subiu ao altar e tentou abrir a Píxide Sagrada. Não conseguiu. Esforçou-se mais; falhou. Ajuntei-me a ele para intensificar e revigorar o empenho; intento gorado. Incomodado em extremo pela situação, só me lembrando de Nosso Senhor sofrendo tratos às mãos dos ímpios, ali de novo humilhado, suscitando o acontecimento um enorme embaraço e assombro, agradeci a generosidade e gentileza ao senhor e dirigindo-me a todos pedi perdão e convidei-os a fazerem a Comunhão Espiritual. Enquanto se retiravam para os bancos, peguei no vaso Sagrado para o colocar de novo no Sacrário. O frei Joaquim, que de nada se tinha apercebido, dirigiu-se então para mim, naquele seu passo apressado e hesitante que fazia-me lembrar o E.T., pedindo que não esquece-se de lhe dar o Senhor sacramentado. Comuniquei-lhe, com aquela voz segredada própria destas ocasiões litúrgicas, que a Píxide não abria. Ao que ele logo retorquiu como uma brisa leve mas firme: abre, abre. Eu confesso, que apesar de estar com o Senhor nas mãos e junto ao coração, só pensei: agora só me faltava mesmo a teimosia de um velhote! Mas evidentemente não quis discutir ali o assunto nem fazer de conta que não tinha ouvido. Por isso regressei ao altar e coloquei o recipiente sagrado em cima do corporal, pensando para comigo que ele não teria outro remédio senão render-se à evidência. O frei Joaquim aproximou-se e com dois dedos, o polegar e o indicador, agarrou uma pequena cruz, frágil, inclinada, como que a partir, que encimava a tampa, puxou ao de leva e esta abriu! Ouviu-se uma gargalhada geral na assembleia. Exclamei graças a Deus! O povo sossegou na sua hilaridade e distribui a Sagrada Comunhão.
3. Meditando no acontecimento, pensei para comigo, vens cheio de erudições universitárias, lestes milhares de páginas ao longo do curso e não foste capaz de dar Jesus Cristo aos outros. Chamas-te um homem cheio de vigor como se a sua energia resolvesse o assunto. Aprende pois que não é a capacidade nem as forças humanas que são capazes de levar Jesus aos outros. Só a santidade o consegue fazer. É na fraqueza que se revela a força, o poder e a sabedoria de Deus. E a chave para chegar a Jesus é só uma: a Cruz. Deus advertiu-te; toma nota. À honra de Cristo. Ámen.
Pe. Nuno Serras Pereira
28.05.2009
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