segunda-feira, 1 de junho de 2020

João Paulo II, a plenos pulmões

Há histórias que só se compreendem com um registo filmado. Uma delas, é a fúria portentosa de um Papa a gritar a plenos pulmões. Não consigo imaginar como foi a entrada de Jesus no templo de Jerusalém, com um chicote na mão, a derrubar as mesas, a chicotear as pessoas, a lembrar-lhes, aos gritos, o respeito devido a Deus. A versão pacífica de um chicote a estalar no ar, sem tocar nos vendilhões, ou uma retórica de tribuno, não correspondem à realidade, mas gostava de ter um vídeo para perceber exactamente o que aconteceu. (O Evangelho da Eucaristia desta passada sexta-feira, dia 1 de Junho, contava por palavras o episódio).

Seja como for, assisti a três ocasiões em que João Paulo II gritou com toda a força e garanto que não é para brincadeiras. Assisti duas vezes pela televisão e uma vez ao vivo.

A primeira vez aconteceu em Março de 1983 na visita à Nicarágua, quando os sandinistas tentaram abafar o discurso do Papa. Para contrariar as palavras de ordem sandinistas, a multidão aplaudia e gritava vivas ao Papa e, sobre toda esta barulheira, com gestos e com gritos ainda mais fortes, o Papa comunicava com o povo. Embora controlasse a instalação sonora, o grupo afecto ao Governo não conseguiu dominar o evento e ficou claro de que lado estava o povo. O Papa não conseguiu ler o que tinha escrito, mas, para quem assistiu na televisão àquela confusão ensurdecedora, pareceu inegável que a mensagem de João Paulo II «passou». A capacidade gestual de João Paulo II, as palavras que gritou e a sintonia da multidão romperam o bloqueio montado pelo Governo e pelos seus apoiantes.

A terceira vez que senti o vigor do Papa João Paulo II foi em Janeiro de 1994, ao vivo. Foram longos minutos, talvez dez minutos, intermináveis e inesquecíveis. Todos os presentes estavam gelados, sustendo a respiração. Mas essa história fica para outro momento.

A segunda vez que ouvi João Paulo II gritar, faz agora 25 anos, foi em Maio de 1993. Como estava em Itália, pude acompanhar a transmissão da visita à Sicília, de 8 a 10 de Maio de 1993. No final da Eucaristia do dia 9, no Vale dos Templos, João Paulo II prosseguiu, sem papel (www.youtube.com/watch?v=m_IxA4iqwaA), dirigindo-se aos responsáveis da Máfia:

– «...Que carregam sobre a sua consciência tantas vítimas humanas... têm de compreender que não é permitido matar... [ainda por cima] inocentes. Deus disse, um dia, “não matarás!”. Um homem, quem quer que ele seja, qualquer grupo que seja, como a Máfia, não pode mudar e espezinhar este direito santíssimo de Deus. Este povo siciliano (...) não pode viver sempre sob a pressão de uma civilização contrária, de uma civilização da morte. É preciso [instaurar] aqui a civilização da vida. Em nome deste Cristo, crucificado e ressuscitado, deste Cristo que é Vida – caminho, verdade e vida –, digo aos responsáveis: Convertei-vos! Um dia, hás-de ver o Juízo de Deus!».

Estes minutos foram surpreendentes pela clareza, pela voz e pelos gestos, mas eu guardo uma impressão ainda mais forte do que aconteceu mais tarde, à varanda do paço episcopal, diante da multidão reunida na pequena praça. Como esta ida à varanda não foi uma cerimónia organizada, a televisão transmitiu na altura, mas hoje não é fácil encontrar essa reportagem na Net. As palavras foram de uma dureza ainda mais impressionante, a ameaça do Inferno foi mais explícita e os gritos, a plenos pulmões, vibravam ainda com mais força. Tal como na Missa, o Papa levava o báculo com o crucifixo mas, para ficar com as mãos e os braços livres, encostou-o ao ombro. Assim, com o máximo de força, com a palavra e com o gesto, o Papa condenou, ameaçou severamente, terminando a pedir, por favor, que se arrependessem.

A visita teve um impacto enorme em Itália. Em resposta, explodiram duas bombas de grande potência em Roma (junto da basílica de São João de Latrão e da igreja de san Giorgio al Velabro) e o Padre Pino Puglisi foi assassinado. Bento XVI mandou beatificá-lo, numa cerimónia que decorreu já no pontificado do Papa Francisco.

Em mais ocasiões, João Paulo II afirmou substancialmente o mesmo que em 1993, mas sem levantar a voz. Bento XVI fez-lhe eco, no seu estilo próprio, por exemplo, numa visita à Sicília em 2010, recordando a memória do Pe. Puglisi e de outros:

– «Não cedais às sugestões da Máfia, que é uma estrada de morte, incompatível com o Evangelho, como os vossos bispos vos têm ensinado tantas vezes, e continuam agora. (...) Caros jovens, não tenhais medo! Não tenhais medo de vos opordes ao mal».
«os mafiosos, não estão em comunhão com Deus: estão excomungados!» 21.06.2014 Calábria


Francisco repetiu várias vezes, mas sem gritar, as palavras de João Paulo II (por exemplo em www.youtube.com/watch?v=CtDM0aAhZLw e www.youtube.com/watch?v=_gPSRVsZLyA), anunciou que ia em Setembro à Sicília e enviou há dias uma carta aos bispos sicilianos reunidos em Agrigento para renovar solenemente o anátema de João Paulo II, em 1993, contra os homens da Máfia – esse sim! – gritado, fez agora 25 anos, a plenos pulmões.
José Maria C.S. André
02-VI-2018
Spe Deus

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