sábado, 25 de abril de 2020

REFLEXÕES SOBRE A PESTE DE 2020 (VI) Luís Filipe Thomaz

A história do homem que morreu por o não abranger o cinto sugere-nos que, antes de rematar estes considerandos, façamos uma reflexão mais, que na situação atual se impõe: a fé não pode jamais ser uma desculpa fácil para que não tomemos as precauções se impõem, pois Deus não socorre a quem se deita a dormir. Os antigos Padres consideravam nomeadamente que não tomar medicamentos é um sinal de orgulho, pois corresponde à presunção estulta de que Deus fará por nós o que não faz pelos demais, como se a nossa pessoa fosse algo de especial.
              A esse propósito vale a pena recordar a historieta reportada por S. João Cassiano (Conferências, I, ii, 6) entre os ensinamentos do abade Moisés, um dos mestres espirituais do deserto de Scetê, no Baixo Egito:

Que direi daqueles dois irmãos que, como vivessem para lá do deserto da Tebaida, onde outrora estivera o bem-aventurado Antão, movidos de uma indiscrição incauta ao internarem-se na extensa vastidão do ermo decidiram não tomar alimento algum a não ser o que o Senhor por Si próprio lhes facultasse. E como errando pelo deserto, já a desfalecer de fome, os vissem de longe uns Mazices [berberes nómadas considerados muito cruéis] e, contra a sua feroz natureza, os socorressem com pães, um deles, sobrevindo-lhe a discrição, recebeu com alegria e ação de graças os que lhe estendiam, como vindos do Senhor, considerando que sem Deus não sucederia que gente sempre ávida de sangue humano, quando faltos de tudo já desfaleciam, liberalmente lhes dessem o sustento. O outro, porém, recusando o alimento como oferecido por mão de homem, à míngua e à fome se finou. E assim, conquanto ambos de início tenham partido de uma persuasão repreensível, um deles, sobrevindo-lhe a discrição, emendou o que incauta e temerariamente concebera, ao passo que o outro, perseverando na sua estulta persuasão, profundamente falto de discrição, tornou-se culpado de sua própria morte, que o Senhor quis evitar, não querendo crer que tivesse sido por inspiração divina que ferozes bárbaros, esquecidos da própria ferocidade lhe tivessem estendido pães em lugar de espadas.

              É por estarmos cônscios de que tudo vem da mão de Deus, mas que tal consciência nos não exclui do número dos filhos de Adão — que, como reza a Anáfora de S. Basílio, o Senhor com justiça, expulsou do Paraíso para este mundo, fazendo-o voltar à terra donde tinha sido tirado — que devemos aceitar com resignação a situação presente, com todas as suas implicações. E dessas não é a menor uma Páscoa no isolamento, privada da consolação da liturgia, a que para o bem de todos somos forçados a renunciar.

(continua, são no total VII reflexões)

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