segunda-feira, 20 de abril de 2020

REFLEXÕES SOBRE A PESTE DE 2020 (I) Luís Filipe Thomaz

A epidemia que neste momento grassa pelo mundo é, para a quase totalidade das pessoas vivas, um fenómeno novo, pois raríssimos devem ser os centenários que recordem ainda a pneumónica de 1918, conhecida em Portugal por a espanhola, por aqui ter chegado através da Espanha. Em tempos mais antigos, porém, foi a Europa muitas vezes varrida pela peste, nome aplicado a diversas epidemias, nem sempre identificáveis, com especial destaque para a Peste Negra de 1347-52, que matou cerca de um terço da população do continente, causando cerca de 25 milhões de vítimas. É esse o primeiro tema sobre que quero hoje refletir convosco.

I

              Nos nossos dias há uma forte tendência para considerar a nossa época como qualitativamente diferente das que a precederam, como uma espécie de éschaton ou meta dos tempos, para além da qual nada de substancialmente diferente se virá a produzir. É a teoria do fim da história, de que houve uma versão marxista-leninista, hoje inteiramente desacreditada mas bem viva ainda há apenas meio século: depois de passar, materialmente falando, pelos modos de produção escravista, feudal e capitalista, a humanidade acharia no modo de produção comunista a sua etapa final, correspondente à perfeição. O regímen comunista constituiria assim o último estádio da evolução do Homem, para além da qual nada se poderia conceber de mais perfeito.
              Quando em 1974-75 em Portugal, contra as predições da ideologia, falhou a instauração de um regímen comunista, recorda-me ter visto escrito numa parede, com tanto de verdade como de ironia: "não vos preocupeis: é a realidade que se engana…"
              Aquela concepção coaduna-se, em certos aspetos, com a que fora anteriormente exposta por Augusto Comte (1798-1857), que contemplava mais a evolução mental que a material, mas chegava na prática a uma conclusão idêntica. Comte via a história universal como uma sucessão progressiva de três estados ou estádios: o estádio teológico ou fictício, em que os fenómenos da natureza eram explicados pelo recurso a divindades imaginárias que os causariam, o estádio metafísico ou abstrato, em que eram explicados por misteriosas forças invisíveis, e, finalmente, o estádio positivo, o definitivo, em que os fenómenos eram racionalmente explicados pela ciência. Nesse estádio, o derradeiro, não haveria já mais lugar para a religião, que perpetuava os estádios já ultrapassados e impedia o progresso.
              Mais recentemente apareceu outra versão, esta capitalista e liberal, da mesma concepção de fim da história. É a que no seu livro The end of History and the last Man expôs Francis Fukuyama em 1992, significativamente na atmosfera de euforia subsequente à queda do Muro de Berlim e ao fim dos regimes comunistas. A história da humanidade seria essencialmente a história da liberdade do indivíduo; consumar-se-ia portanto no momento em que se generalizasse a democracia, a liberdade individual e o liberalismo económico. A partir daí haveria apenas a registar desenvolvimento económico e progresso tecnológico ilimitados. Estaríamos, portanto, já prestes a atingir essa fase final, conquanto subsistissem aqui e além bolsas de resistência a essa felicidade universal, nomeadamente um ou outro regímen autoritário. Quando começou a periclitar o autoritarismo em países muçulmanos como a Tunísia, a Líbia ou o Egito, chamaram-lhe a primavera árabe; faltariam, portanto, três meses apenas para o verão eterno…
              Era, uma vez mais, a realidade a enganar-se: à instauração da democracia no Egito seguiu-se o triunfo dos Irmãos Muçulmanos, uma corrente islâmica fundamentalista; à queda de Khadafi o caos na Líbia; e ao esboço de revolução na Síria uma guerra civil que dura ainda.
              Para os adeptos desta corrente a bem-aventurança consistiria aproximadamente em ter em casa quatro frigoríficos e seis televisões, e gozar nas praias da Patagónia não sei quantos meses de férias; sobretudo, fruir do inteiro rol das variadas liberdades que todos os dias os políticos nos ofertam, em que brilham como três sóis três sacrossantos direitos: votar, fornicar e abortar…
              Para nós, cristãos, a explicação é simples: a eternidade é um atributo de Deus; o Homem vive no tempo, sujeito à mutabilidade das coisas. E, como afirma o adágio popular, "o futuro a Deus pertence" — só Ele o conhece, jamais pode o Homem prevê-lo. Em boca humana jamais cabem nem o nunca nem o sempre. Como afirma o salmo 118 (v. 96): "da mais acabada perfeição vi o termo; só o Teu mandamento é duradouro assaz!".
              Se sempre houve seres humanos com imunidades, não há épocas históricas imunes a vírus!
              Por outro lado, sabemos que Deus é justo; e que não é uma força cega, mas um Ser pessoal, a cuja imagem o Homem é também pessoa. Cada um de nós é uma singularidade irrepetível, como Ele próprio, que no dizer do salmista (Sl 32, 15) "modelou um a um o coração dos homens". Deus não quer salvar a Humanidade, que é uma abstração, quer salvar os homens. Como poderia Ele ter reservado a felicidade a uma geração futura, e ter deixado, durante milénios e milénios, tantos milhões de homens passarem neste mundo uma vida de aflições e de trabalhos, sem sequer anteverem a felicidade terrestre de que haveriam de gozar os netos de seus netos? Deus é equidistante de todas as idades — é um postulado da própria justiça divina!
              Mas se o prémio dos trabalhos é para todos o mesmo, porque não há de ser igual para todos também o preço a que se adquire? Não creio, por isso, que geração alguma, no passado, no presente ou no futuro, esteja isenta da sobretaxa de padecimento e dor que pesa sobre a existência do homem na terra — na prévia certeza de que "os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória que se há de manifestar em nós" (Rom 8, 18).
              Pode por isso cada um de nós dizer como S. Paulo na época do seu cativeiro: "neste momento, alegro-me nos meus sofrimentos por vós, e completo na minha carne o que falta às tribulações que Cristo passou pelo seu corpo, que é a Igreja " (Col 1, 24). E noutro passo (Fil 2, 17), contente de se sentir associado ao sacrifício vicariante de Cristo, que se ofereceu a Deus não pelos seus pecados, que os não tinha, mas pelo pecado do mundo: "Se eu devo ser oferecido como libação sobre o sacrifício e oblação da vossa fé, alegro-me e regozijo-me com todos vós; de igual modo, alegrai-vos também vós e regozijai-vos comigo!".

(continua, são no total VII reflexões)

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