terça-feira, 9 de maio de 2017

O Cardeal Gerhard Müller fala das diferenças entre Francisco e Bento XVI e dos casos de abusos de menores

Entrevista de Rita Garcia in Observador AQUI 
(seleção de imagem do blogue)

Gerhard Müller é um homem tão solene como as funções que ocupa. Alto, robusto e aprumado, com as suas vestes negras de cardeal, é desde 2012 o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o braço direito do Papa Francisco na preservação dos dogmas da Igreja Católica. Escolhido por Bento XVI para ocupar um cargo que ele próprio desempenhara, tinha — e tem — muito em comum com Joseph Ratzinger. Ambos são alemães, teólogos e académicos, e partilham uma certa visão do mundo. Além disso, foi Müller o escolhido por Bento XVI para coordenar a publicação das suas Obras Completas.

Nasceu em Finthen, um subúrbio da cidade de Mainz, em 1947. O pai era um operário da indústria automóvel e a mãe uma doméstica que acompanhou de perto a educação dos quatro filhos. Gerhard sempre quis ser padre. Segundo revelou ao Osservatore Romano (o jornal oficial do Vaticano), a mãe costumava contar que, com apenas quatro anos, o filho ficou tão impressionado com a imagem do bispo de Magonza, Albert Stohr, que exclamou: “Quando for grande, quero ser bispo!”. E foi mesmo.

Doutorou-se em 1977 e foi ordenado padre no ano seguinte. Em 2002, João Paulo II nomeou-o bispo de Ratisbona. O sonho estava realizado. Em 2014, coube a Francisco entregar-lhe o barrete vermelho de cardeal. Os dois nem sempre estão de acordo e têm estilos distintos, mas mantêm uma relação leal: encontram-se uma vez por semana ou de 15 em 15 dias no Palácio Apostólico para falar de trabalho.

De resto, Gerhard Müller passa grande parte do tempo no seu gabinete do Palácio do Santo Ofício, um imponente edifício amarelo construído no início do século XVI e que albergou o temido tribunal eclesiástico com o mesmo nome. É nas traseiras do palácio, situado a Sul da colunata da Basílica de São Pedro, que fica o gabinete do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. As grandes janelas têm vista para a Aula Paulo VI, uma gigantesca sala de audiências situada dentro do Vaticano, com capacidade para 12 mil pessoas. O Papa vive a dois passos, na Casa de Santa Marta. Müller mora do outro lado da Basílica, perto da Porta de Sant’Anna.

O Prefeito é visto como um conservador que não hesita em recordar publicamente os preceitos da doutrina quando as vozes progressistas clamam por mudanças. Foi atacado depois de lembrar, numa entrevista à revista Il Timone, que, à luz da doutrina católica, os divorciados recasados vivem em situação de adultério e “o adultério é um pecado mortal”. Ao Observador, Müller diz que não tem medo de fazer afirmações impopulares: “O próprio Jesus não foi assim tão bem aceite quando falou da indissolubilidade do matrimónio”. No entanto, sente-se insultado quando lhe atribuem o epíteto de polícia da doutrina.

Numa conversa pausada e assertiva com o Observador no Vaticano, recusa as acusações feitas por Mary Collins, a irlandesa que foi vítima de abusos sexuais por um padre na infância e se demitiu da Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores por alegar que a Congregação para a Doutrina da Fé colocou entraves ao trabalho do grupo de trabalho criado pelo Papa Francisco. Garante que a hierarquia da Igreja está determinada a lutar contra a pedofilia nas suas fileiras, e lamenta que o olhar da sociedade seja tão intolerante com o clero, quando se mostra complacente com abusadores de Hollywood ou de outros setores poderosos.

Nas vésperas da visita do Papa Francisco a Portugal, Gerhard Müller considera que a mensagem de Fátima não podia ser mais atual, numa época em que surgem novos nacionalismos e imperialismos perigosos para a Humanidade. Diz ao Observador que agora, como em 1917, é preciso apelar à conversão dos corações para que o ódio não vença o amor.

Foi nomeado Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé pelo Papa Bento XVI e é próximo da sua mensagem, estudou-a profundamente. Quais foram as principais alterações com a chegada de Francisco?

O Prefeito desta Congregação não está ligado às características pessoais do Papa, mas à sua missão. Não se trata apenas de uma relação pessoal. O Papa, seja ele Bento, Leão ou Francisco, tem a mesma missão confiada por Jesus e a nossa Congregação já leva 500 anos a apoiar o Papa no seu mister de ser o primeiro pastor do rebanho, e de dar verdadeiro testemunho da fé revelada em Jesus Cristo. Os media podem estar mais interessados em sentimentos pessoais e nesse tipo de discussão, nós estamos mais orientados para a nossa tarefa de promover a fé católica em todo o mundo, em nome e com a autoridade do Papa atual. E também para a defesa da fé e da disciplina da Igreja contra heresias, cismas e outros casos onde ela seja violada.

Essa é a abordagem formal ao seu trabalho. Mas o facto é que se trata de dois homens com estilos totalmente diferentes. Quais são as diferenças práticas na forma de trabalhar de Francisco e de Bento XVI?

O Papa tem o seu ênfase próprio, a sua própria história. As circunstâncias da sua vida e da formação da sua razão e das suas experiências são muito diferentes das de alguém oriundo da Alemanha, com uma vida académica, virada para o nível académico que existe na teologia alemã há vários séculos. O Papa Francisco tem uma espiritualidade que lhe vem dos Jesuítas, enquanto a do Papa Bento XVI lhe chega mais de Santo Agostinho, São Boaventura e da tradição da teologia existencial. Seguramente que a realidade do Papa Francisco, vindo de um contexto latino-americano, é muito diferente da história e da cultura europeias. No entanto, somos a mesma Igreja e a Fé não divide as pessoas. É a base da unidade. “Una fides” é a expressão latina para uma fé, a mesma fé que temos, a mesma missão. É mais interessante ver o que liga os diferentes Papas através da longa História da Igreja do que olhar para as diferenças. É muito interessante ver como o Espírito Santo age por meio das personalidades distintas que ocupam a Cathedra Petri (a cadeira de Pedro).

Nos últimos quatro anos, quais foram as principais alterações que Francisco trouxe à Igreja?

Os media dão atenção aos sapatos vermelhos ou pretos, o que, para mim, não são coisas assim tão importantes. Reparam se ele vive em privacidade no Palácio Apostólico ou em Santa Marta. Estas não são questões de relevância teológica, mas o mais significativo é o novo estilo que vem da experiência do Papa na América Latina, mais próxima da realidade dos pobres e das grandes diferenças que existem na sociedade.

Na Alemanha, depois da Segunda Guerra Mundial, deixou de haver esta disparidade entre as classes, temos uma sociedade mais unida, há mais solidariedade, graças à doutrina social da Igreja que teve início no pós-Guerra, na Alemanha, e aos partidos democráticos de inspiração cristã e aos social-democratas. Não há assim tantas forças anti-clericais.

No meu tempo de professor universitário em Munique, todos os anos tirava três meses de férias em países da América Latina — Peru, Brasil. Por isso, esta mentalidade, diferente da europeia e da norte-americana, não me é assim tão estranha. Conheci algumas obras sobre a teologia da libertação que está de acordo com a doutrina da Igreja, enquanto outras são mais próximas da abordagem marxista. O que eu retiro da teologia da libertação é um maior desenvolvimento da doutrina social da Igreja, relativamente às circunstâncias especiais que se verificam na América Latina.

Do ponto de vista do dogma, não há nada que diga que o Papa deve vir da Europa, do centro da Europa. No passado, houve muitos Papas provenientes da Grécia, da Síria, de outras partes do Império Romano, representando outras culturas. Não é absolutamente novo ter um Papa que vem de uma cultura diferente. Agora, pela primeira vez, temos Papas de continentes diferentes, mas a cultura da Argentina não é totalmente diferente da europeia. É mais próxima do que algumas culturas asiáticas. A realidade latino-americana é uma mistura dos costumes europeus com os nativos. Noutros continentes, como a África ou a Ásia, há uma cultura própria mais forte, que não sofre tanta influência do pensamento europeu. Isso para nós não constitui um problema. É um sinal da riqueza da revelação de que todos são chamados a pertencer à mesma Igreja, à mesma família de Deus em todo o mundo.

Na América Latina, o Papa esteve sempre próximo dos pobres, da periferia da sociedade, de que ele tanto fala. Essa realidade traz desafios à Igreja e à doutrina?

Temos a doutrina social. Esta questão das periferias não começou com o Papa Francisco, o que acontece é que ele tem sublinhado esse aspeto, tem-lhe dado relevo. Mas não começámos do ponto zero. Na História da Igreja temos tantas situações análogas… Quando houve novos encontros entre diferentes culturas, quando os povos germânicos e eslavos entraram na cultura cristã isso deu origem a tensões e à necessidade de novos ajustes. Não temos uma cultura cristã tão puramente europeia que justifique ficarmos chocados com a aproximação de outra cultura católica. Há sempre uma dimensão de universalidade da Igreja, que pode ser representada e inculturada por povos diferentes. As culturas devem estar abertas à vida universal de todos os povos do mundo. São esses povos de todo o mundo que formam a família de Deus. João Crisóstomo escreveu numa célebre carta a Ireneu de Lyon como era admirável que aqueles que viviam na Índia, na Síria e na Germânia daquele tempo, apesar das diferentes culturas e línguas, fossem membros do mesmo corpo de Jesus Cristo. Isso é um milagre e uma maravilha permanente que temos na Igreja.

Então a grande diferença nestes quatro anos é uma questão de estilo.

É o estilo. O Papa que vier a seguir também terá o seu próprio estilo. Foi sempre assim, ninguém pode ser uma cópia do seu antecessor. Cada Papa, na sua pessoa, é um sucessor de São Pedro, dogmaticamente falando — e não um sucessor do seu antecessor. Do ponto de vista temporal e cronológico, é, mas ao nível do dogma é o sucessor de Pedro e tem o direito de realizar a sua missão de acordo com o seu carisma, com a sua história, de moldar o Pontificado à sua maneira.

O Papa anterior trabalhou nesta Congregação, foi o Prefeito durante anos. Era da casa. Francisco não. Até que ponto é diferente a relação dos dois com a Congregação para a Doutrina da Fé?

Devido à sua história pessoal, naturalmente que Bento XVI era mais próximo. Não é possível passar aqui 24 anos e depois dizer: “Isto não tem nada a ver comigo”. Por isso, claro que as suas emoções e a sua sensibilidade serão mais próximas desta Congregação, mas a tarefa deste departamento não mudou. A ida e vinda de um Papa não significa o mesmo que a entrada ou saída do Prefeito. As tarefas sobrepõem-se e a missão desta Congregação não depende apenas do Prefeito, mas de todos os padres e dos 25 cardeais que trabalham connosco. A tarefa da Congregação para a Doutrina da Fé não se alterou e isso consiste em aconselhar o Santo Padre, em dar apoio ao seu magistério, com autoridade e responsabilidade, com o trabalho do dia a dia. Para os nossos documentos e doutrinas, precisamos de aprovação do Papa, mas na nossa vida quotidiana agimos sob a autoridade dele, mas com a nossa responsabilidade.

Com que frequência se encontra com o Papa?
Depende. Os prefeitos desta Congregação e da Congregação para os Bispos têm encontros regulares com o Papa, todas as semanas, de quinze em quinze dias. Dependendo da ocasião, essas reuniões podem ser mais frequentes.

Encontram-se no Palácio Apostólico?

Normalmente, no Palácio Apostólico porque não são encontros privados entre amigos ou família. São reuniões de trabalho onde lhe levamos os documentos que estamos a preparar para ele tomar decisões.

Houve momentos, depois da eleição deste Papa, que insiste numa abordagem pastoral, em que o senhor cardeal alertou que a Igreja deve ser prudente com algumas mudanças. Refiro-me à interpretação da exortação apostólica Amoris Laetitia, e à carta que alguns cardeais escreveram ao Papa durante o Sínodo da Família, por exemplo. Como lida com o facto de o Prefeito parecer, por vezes, ter uma opinião diferente da do Papa?

Não me parece que o Papa tenha mudado a doutrina da Igreja. A doutrina dogmática não pode ser mudada porque se baseia na revelação e no magistério da Igreja, do Papa e dos bispos. Na doutrina da Igreja, Jesus é alguém que revela, é um mediador para a salvação. Os Apóstolos e seus sucessores exercem apenas o ministério da revelação e da salvação que nos é dada por Jesus Cristo. Temos de ser verdadeiros ministros de Cristo. O Papa Francisco já disse que a doutrina relativamente ao matrimónio é muito clara, muito bem formulada e não está apenas relacionada com palavras da Bíblia. Resulta de doutrina estabelecida ao longo de dois mil anos. Não podemos ignorar o Concílio de Trento, por exemplo, nem a doutrina sobre o matrimónio elaborada na [constituição pastoral] Gaudium et Spes, resultante do Concílio Vaticano II, nem o que é dito na [exortação apostólica] Familiaris Consortio [de João Paulo II], nem na encíclica Caritas in Veritate, do Papa Bento XVI, nem em todas as declarações feitas por nós. O problema hoje é como nos devemos dirigir a este grande número de pessoas que não entende a doutrina cristã relativamente ao matrimónio. Partilham outra mentalidade que não é amistosa, nem favorável à vida e às práticas cristãs. [A questão está em perceber] como chegar junto destas pessoas e explicar aquilo que significa para nós a graça de Deus, qual é o significado profundo do matrimónio, da paternidade, de alguém se tornar pai ou mãe. Estes elementos básicos da nossa antropologia nem sempre são compreendidos.

Mas essas diferentes abordagens vêm de toda a parte, incluindo da Igreja. Os bispos do seu país, a Alemanha, por exemplo, têm uma opinião diferente em relação ao Capítulo VIII da exortação Amoris Laetitia.

Mas nada disto depende das opiniões pessoais dos membros da Igreja. Não são as opiniões dos bispos que são decisivas, mas a fidelidade à palavra de Deus. Há aqui um certo positivismo do magistério, como se o Papa ou o conselho dos bispos fossem senhores da revelação. Isso é um mal entendido. O Papa deu uma interpretação na Amoris Laetitia, e não é bom que os bispos deem uma interpretação da interpretação. Critiquei isso. É contrário à estrutura dos sacramentos da Igreja Católica. O Papa tem uma autoridade superior, sujeita à revelação, e é responsável pela unidade da Igreja, na fé revelada. Não é alguém que emite certas opiniões de maneira a fazer uma síntese de opiniões sobre isso. Alguns bispos correm o risco de dar mais atenção àquilo que pode sofrer o efeito da opinião pública do que à palavra de Deus, que deveria vir em primeiro lugar, de acordo com a Bíblia e a tradição apostólica.

E qual é a sua proposta para lidar com os católicos que contraíram o matrimónio e se divorciaram?

O sacramento do matrimónio é indissolúvel por vontade de Deus. Ninguém pode mudar isso. Uma possibilidade é voltar para o esposo legítimo ou então desistir das relações que não são válidas. A questão está apenas em perceber se as condições para aquele matrimónio estavam reunidas, de acordo com os preceitos da Igreja. O casamento civil não é exatamente igual ao sacramento do matrimónio. Seguramente que há muitas pessoas que não conseguem entender isto.

Parece-lhe que é sempre possível voltar para o matrimónio?

Se humanamente não for possível, também não podem viver [com outros] como se fossem esposos.

Há quem argumente que isso elimina a possibilidade de penitência ou a possibilidade de reconhecer o que correu mal, permanecendo envolvidos na vida da Igreja.

Não é possível ter dois tipos de cristianismo: um para uma elite, que respeita a palavra de Deus, e o outro para os outros, a quem impomos apenas alguns direitos e sacramentos, deixando que a vida corra como ela é. Jesus veio para mudar o velho mundo de pecado, do qual fazia parte o divórcio. Jesus explicou isto de forma muito clara. Não é assim tão fácil satisfazer a vontade de Deus. Jesus não queria ir para a Cruz. Podemos dizer que era necessário que Jesus morresse pelos nossos pecados, mas isso não depende da nossa vontade pessoal, da nossa opinião. Quando as pessoas dizem que sim apenas a uma pessoa, para a vida inteira, e lhes é concedido por Deus o laço matrimonial, Ele estabelece uma aliança entre essas duas pessoas. Devemos respeitar a realidade do sacramento que recebemos. Seguramente que para muitos no mundo isto é estranho. Muitas pessoas são incapazes de perceber e procuram formas de escapar a esta realidade. Mas se somos batizados, somos batizados, somos cristãos. Não podemos dizer: “Ah, eu vivo num mundo de muçulmanos, vou à mesquita, porque podemos louvar a Deus em todos os sítios.” Se somos cristãos, somos cristãos. É preciso assumir as consequências. Se nos casamos enquanto cristãos, temos de assumir as consequências disso. Não podemos dizer: “Casei-me primeiro, tive duas crianças, e depois casei-me com outra pessoa, tive outros filhos e já não quero saber dos primeiros.” Há obrigações que resultam do matrimónio e que é preciso assumir.

Enquanto Prefeito desta Congregação, sente-se, de certa forma, o polícia da doutrina?

De certa forma, isso parece-me insultuoso. É um estereótipo que recai sobre a nossa Congregação. A fidelidade à palavra de Jesus Cristo é uma tarefa da Igreja, não tem nada a ver com policiamento. A palavra de Deus é uma palavra de salvação. Poderia parecer bom para nós que encontrássemos formas de fundamentar Jesus Cristo de maneira a que a religião fosse aceite por todos e merecesse o aplauso de todos, mas nós somos a Igreja Católica. Temos de permanecer próximos das palavras de Deus, caso contrário perdemos os nossos fundamentos. Não podemos falar apenas para agradar às pessoas.
Quer dizer que muitas vezes lhe cabe a si ser a voz do dever…

Se eu disser “Podem fazer o que quiserem”, serei muito amado. Dirão: “Oh, é um grande amigo nosso.” Mas se os pais ou os professores permitirem tudo às crianças… No longo prazo, não é bom para nós. O próprio Jesus não foi assim tão bem aceite quando falou da indissolubilidade do matrimónio. Os apóstolos não ficaram muito entusiasmados. Disseram: “É impossível para nós enquanto homens”. Mas Jesus disse: “Com a graça de Deus, tudo é possível”. Isto é o Evangelho cristão — e não apenas falar para agradar às pessoas. Há quem fale em conservadores e liberais. O que são liberais? O que é que aconteceu a alguns países que aderiram ao cristianismo liberal, reduzindo a base do próprio cristianismo? Caíram no secularismo, na indiferença. Não é assim tão fácil ser e tornar-se cristão. Só há um caminho estreito que conduz ao céu. Por isso, é preciso manter clara a revelação de Jesus Cristo, tornando possível segui-Lo.

Esta Congregação tem a tarefa difícil de lidar com os casos de abusos sexuais na Igreja. Em Março, Mary Collins [vítima de abuso na infância por parte de um padre] demitiu-se da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores. Como vê esta saída?

Esta demissão não teve nada a ver connosco. Fomos acusados e eu não sei porquê.

Essas críticas pareceram-lhe um ataque pessoal?

Não, mas levámo-las muito a sério porque os nossos colaboradores trabalham de dia e de noite há 16 anos, de forma exemplar. É uma tarefa árdua, não é fácil trabalhar neste campo. E agora são acusados de não fazer nada… Esta Comissão começou há dois anos. Não é possível que a nossa Congregação seja acusada de ter a culpa desta demissão. Todos queriam trabalhar com esta Comissão. Se alguém não queria continuar naquele trabalho, podia sair, mas não acusar outro grupo de pessoas, que nada tiveram a ver com isso.

O senhor cardeal e a Congregação estiveram sempre disponíveis para a Comissão?

Trabalhámos juntos na Constituição [Pastor Bonus], mas esta Congregação tem uma tarefa especial confiada pelo Papa para liderar os processos canónicos. Se os outros lá fora tiverem ideias diferentes, não dependemos daquilo que os outros pensam de nós. Não podem dar à nossa Congregação a definição que entenderem. Se entendem que devemos entrar em contacto com as vítimas ou os perpetradores de uma forma pastoral, essa não é a nossa missão.

Quando um destes casos entra na Congregação, qual é o procedimento habitual?
Há um procedimento estabelecido pelo Papa João Paulo II, e que os Papas Bento XVI e Francisco aceitaram, que assenta em regras da Lei Canónica e da Constituição motu proprio Sacramentorum Sanctitatis Tutela. Os primeiros destinatários destas acusações de abusos cometidos sobre menores por clérigos são as dioceses ou as congregações religiosas. Estas instituições eclesiásticas informam-nos a nós, que somos a segunda ou terceira instância deste processo. A principal responsabilidade centra-se na diocese e não aqui em Roma. Aqui não somos responsáveis por toda a Igreja. Apenas agimos com a autoridade do Papa. O Santo Padre é uma instância de apelo e, por isso, ele pode pedir à sua Congregação que supervisione tudo e tome algumas decisões. Mas não está tudo centralizado em Roma. Não podemos ocupar-nos das terapias, dos discursos pastorais, da investigação nestes locais. Estamos em Roma, não por todo o mundo. A Congregação não é uma organização internacional, é apenas uma instituição que dá apoio ao Santo Padre, na sua responsabilidade sobre a Igreja universal. A responsabilidade concreta recai sobre as dioceses. Nós temos de nos restringir aos processos canónicos.

Quantos casos chegaram aqui nos últimos três anos?

É difícil dizer porque aqui chegam as acusações e nós temos de nos concentrar nas sentenças que são dadas no fim. Alguns casos prolongam-se por muito tempo e duram 14 ou 15 anos.

E quantas sentenças foram atribuídas nos últimos três anos?

Não sei o número exato. Depende dos anos. Mas temos alguns dados publicados no Anuário Pontifício. Mas não são tantos quanto as pessoas pensam.

Serão centenas?

Centenas… Mas num período de 50 ou 60 anos. E isto são sentenças. Porque também há acusações que não podem ser clarificadas ao fim de 50 anos. Às vezes há casos em que as testemunhas dizem que ouviram alguma coisa, nalgum lado, mas não há um autor do abuso, ninguém é acusado. Também há acusações estranhas que são verdade e nós damos as sentenças de acordo com a Lei Canónica e não a nosso bel-prazer, de acordo com a nossa subjetividade.

Em países profundamente católicos, fazer uma denúncia contra um Papa pode ser muito difícil. A Igreja é muitas vezes vista como uma instituição poderosa.

A Igreja não é uma instituição poderosa com poder político, mas tem uma autoridade que está de acordo com a salvação, a revelação e o Evangelho. Essa é a missão da Igreja. Os Papas e nós sempre dissemos que é uma absoluta contradição para o ethos de um padre abusar de menores ou cometer outros crimes contra a dignidade do Homem, porque somos as primeiras testemunhas da dignidade do Homem, incluindo os menores, as crianças. Por outro lado, a opinião pública fala apenas dos clérigos como se, cada vez que vemos um padre na rua, ele fosse um possível criminoso, abusador de crianças. A realidade é totalmente oposta. A percentagem de padres envolvidos nestes casos lamentáveis é muito pequena, mais pequena do que na população geral. Temos tantos casos de abusos na sociedade civil, nas sociedades ocidentais, nas asiáticas e em África e noutras culturas onde é quase legal. E ninguém fala nisso. É como se o abuso de menores fosse um problema exclusivo do clero. A realidade é outra. Intriga-me que não haja um movimento público para parar o abuso de crianças, nomeadamente na pornografia infantil na televisão, em livros, na Internet. Não há ações para parar isso. Se houver gente influente envolvida nisto, toda a gente encontra formas de os desculpar. Se acontecer em Hollywood, ninguém se importa. Compreendem, têm pena dessas pessoas. A realidade é que as autoridades da Igreja Católica, tal como milhões e milhões de católicos, não estão envolvidas nisto. As autoridades da Igreja — os bispos e o Papa — são o único grupo que luta absolutamente contra o abuso de menores, não apenas em teoria, mas também na prática. Estamos na linha da frente desta luta. E a Comissão para a Proteção de Menores não foi instituída apenas para lidar com este grupo de padres, mas também para confrontar a Igreja Católica com a sua autoridade moral contra estes abusos que acontecem aos milhões em todo o mundo.

O Papa Francisco mencionou a intenção de criar um tribunal para lidar com este tipo de abusos, mas isso não aconteceu. Por que razão?

Nós temos um tribunal contra casos reais de abusos e de crimes, mas não temos condições para construir uma definição fluída daquilo que é a negligência e do que é o abuso. Um tribunal deve ter uma definição das matérias que julga e a negligência não é assim tão fácil de entender. As circunstâncias nem sempre são fáceis. No fim do processo, no fim da investigação, sabemos mais coisas, mas no início há vozes que ninguém sabe de onde vêm. É fácil criticar, mas na realidade não é assim tão fácil de investigar, de encontrar informação significativa.

A Igreja está a fazer tudo o que pode para prevenir estes casos em todo o mundo?

Isso é absolutamente verdade. No início de 2001, houve uma reorganização [da forma de lidar com este assunto], porque ninguém sabia o que devia fazer. Ninguém sabia que este também era um problema existente no seio do clero católico, não havia uma visão global. Desde essa altura, há um procedimento claríssimo para enfrentar os problemas que surgem.
Pensa que, durante a investigação, os suspeitos devem ser mantidos nos cargos ou devem ser afastados das crianças?
Depende dos casos. Não é possível dar a todos os casos a mesma penalização. A culpa deve ter uma pena adequada. Nos tribunais civis, as pessoas não recebem todas as mesmas penas — é impossível. Depende das circunstâncias, da prevenção do futuro. Mas há muitos casos aqui em que decidimos que devemos dispensar as pessoas do estado clerical. Para outros, há medidas distintas. Mas não há nenhum caso provado de abuso de menores sem punição.

Quanto a Fátima, qual é a relevância desta viagem do Papa?
É o centenário e, por isso, é uma viagem importante. Vemos que os problemas do mundo são muito semelhantes aos desafios que havia em 1917. Estava a começar a Primeira Guerra Mundial, era o arranque de grandes ideologias que devastaram a Humanidade. Agora somos confrontados com novos nacionalismos e imperialismos que são muito perigosos para a Humanidade. Por isso, julgo que a mensagem de Fátima é muito importante, enquanto chamada à conversão dos nossos corações, para os enchermos de amor e não de ódio, promovendo os valores da solidariedade, da responsabilidade ou da ecologia, do cuidado com o ambiente e, especialmente, da proteção da dignidade humana e para a dedicação de todos à totalidade da vida, na Terra, mas também pensando no nosso caminho em direção ao céu. O nosso horizonte não se limita ao seu curto percurso na Terra. O respeito pelos direitos humanos é uma grande mensagem da Igreja, também através da voz profética da Virgem Sagrada que apareceu a estas três crianças em Fátima. Crianças, pobres, marginalizadas, longe dos centros do poder, longe de Silicon Valley…

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