domingo, 17 de janeiro de 2016

A Cândida e o António

Cândida Ventura em Praga, junto à placa memorial dos estudantes checoslovacos: Jan Palach e Jan Zajic 
que se imolaram em janeiro e fevereiro de 1969, protestando contra a ocupação militar do seu país. 
Quando os jornais destes dias noticiaram a morte da Dra. Cândida Ventura, indómita lutadora «anti-fascista», lembrei-me do António.

Durante muitos anos, a indómita lutadora defendeu coisas aberrantes, mas é justo lembrar esses excessos no seu contexto. Em Portugal, ainda não havia mecanismos eleitorais livres, de modo que quem queria mudanças sentia-se empurrado para a revolução armada. Pelo menos, assim reagiam alguns. Outros acomodavam-se, temendo que «fosse pior a amêndoa que o cianeto» – como dizia um conhecido meu, que gostava de citar provérbios e autores clássicos. A Dra. Cândida Ventura não era de se ficar. Alistou-se no Partido Comunista e trabalhou na clandestinidade para derrubar o Governo. Chegou a fazer parte do Comité Central. Foi parar à prisão, mas a saúde deteriorou-se, a polícia compadeceu-se e libertou-a antes do tempo previsto. Logo que a soltaram, correu a abrigar-se por trás da Cortina de Ferro, como representante do PCP em Praga. A vida no paraíso comunista não correspondia à descrição do paraíso e a enérgica Cândida Ventura começou a entrar em conflito. Abreviando: acabou em divergência aberta com Álvaro Cunhal e todos os outros dirigentes e abandonou o Partido.

O António Patrício Gouveia era um rapaz meu conhecido, uns 8 anos mais velho. Recordo-o alto, elegante, exuberante de iniciativas, com o coração a transbordar generosidade e uma capacidade fantástica de fazer amigos. Tinha concluído uma pós-graduação em relações internacionais nos Estados Unidos e estava feliz, recém-casado com uma rapariga de quem vivia enamorado. Obviamente, sonhava mudar o mundo. E, tudo isto, intensamente.

Com o entusiasmo que o caracterizava, o António começava o dia fazendo oração. Depois, irrompia todos os dias na Missa da manhã e continuava mais um tempo na igreja a agradecer a Comunhão. Ao longo do frenesim do dia, rezava o terço e dedicava vários intervalos à oração. Num deles, percebeu que Deus o chamava a ser do Opus Dei e, desde então, esforçava-se por ser fiel a essa vocação. Além da Missa, procurava passar pela igreja mais alguma vez, para adorar o Senhor no Sacrário. E tinha tempo para rir, com aquela sua felicidade contagiosa, e acompanhar o ritmo desenfreado de Francisco Sá Carneiro, que escolheu aquele miúdo como chefe de gabinete. Foi nessa função que o António se cruzou com a Cândida. Tudo a correr, rapidíssimo. A antiga comunista estava com uma neta e o António só teve tempo de lhe dizer que, se a pequena se quisesse baptizar, falassem com a mãe dele para lhe dar catequese.

Camarate (Lisboa) 4 de dezembro de 1980
A história do António ficou por aqui, tanto mais que pouco depois ele explodiu nos ares, no mesmo avião que Sá Carneiro e Amaro da Costa. A história da neta da Cândida continuou, porque a pequena quis baptizar-se e foi pedir à mãe do António que a preparasse.

Passado alguns anos, a própria Cândida ganhou balanço e foi bater à mesma porta, para receber catequese e baptizar-se.

Imagem não corresponde ao Batismo de Cândida Ventura
Numa época em que eu viajava frequentemente ao Algarve, cruzei-me algumas vezes com um grupo de universitárias minhas conhecidas, que participavam em palestras e momentos de oração: lembras-te de uma velhinha simpática que vinha connosco? Era a Cândida Ventura! Lembro-me vagamente do grupo, mas não recordo as caras. Assim, perdi a oportunidade de conhecer uma lendária anti-fascista. Agora, ando à procura do número de telefone:
– Alô, Céu? Daqui Terra! Há possibilidade de saber o que o António disse à Cândida, quando ela aí chegou?
José Maria C.S. André
Correio dos Açores, Verdadeiro Olhar, ABC Portuguese Canadian Newspaper, Spe Deus
17-I-2016

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