quarta-feira, 23 de março de 2011

Meditação de Francisco Fernández Carvajal


BEBER O CÁLICE DO SENHOR
– Identificar em tudo a nossa vontade com a do Senhor. Corredimir com Ele.
– Oferecimento da dor e da mortificação voluntária. Penitência na vida corrente. Alguns exemplos de mortificação.
– Mortificações que nascem do serviço aos outros.


I. JESUS FALA pela terceira vez aos seus discípulos da sua Paixão e Morte, bem como da sua Ressurreição gloriosa, enquanto se dirige a Jerusalém. A certa altura do caminho, perto já de Jericó, uma mulher, a mãe de Tiago, aproxima-se d’Ele para lhe fazer um pedido em favor dos seus filhos. Prostrou-se diante de Jesus, conta São Mateus, para lhe fazer uma súplica. Com toda a simplicidade, diz a Jesus: Ordena que estes meus dois filhos se sentem no teu reino, um à tua direita e outro à tua esquerda1. O Senhor responde-lhe imediatamente: Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que eu hei de beber? Eles disseram: Podemos2.
Os dois irmãos não deviam ter uma noção muito exacta do alcance das palavras do Senhor, pois São Lucas nos diz que, pouco antes, quando Jesus falava da sua Paixão, eles nada disso compreendiam, e essas palavras eram para eles um enigma cujo sentido não podiam entender3. No entanto, ainda que movidos por uma intenção apenas geral, mostraram-se dispostos a querer tudo o que Jesus quisesse; não puseram limite algum ao seu Senhor.
Nós também não os pusemos e por isso, quando pedimos alguma coisa na nossa oração, devemos estar dispostos a aceitar, acima de tudo, a vontade de Deus, mesmo que não coincida com os nossos desejos. “Sua Majestade – diz Santa Teresa – sabe melhor o que nos convém. Para que havemos de aconselhá-lo sobre o modo de nos distribuir os seus dons? Poderia com razão dizer-nos que não sabemos o que pedimos”4. O Senhor quer que lhe peçamos o que precisamos e desejamos mas, sobretudo, que conformemos a nossa vontade com a sua. Ele nos dará sempre o melhor.
João e Tiago pedem um lugar de honra no novo Reino, e Jesus fala-lhes da Redenção. Pergunta-lhes se estão dispostos a padecer com Ele. Utiliza a imagem hebraica do cálice, que simboliza a vontade de Deus sobre um homem5. O do Senhor é um cálice amarguíssimo, que se converterá em cálice de benção6 para todos os homens.
Beber o cálice de outro era sinal de uma profunda amizade e da disposição de partilhar de um destino comum. É a esta íntima participação que o Senhor convida os que o queiram seguir. Para participar na sua Ressurreição gloriosa, é necessário compartilhar a Cruz com Ele. Estais dispostos a padecer comigo? Podeis beber o cálice comigo? Podemos, responderam aqueles dois Apóstolos. Tiago morreu poucos anos depois, decapitado por ordem de Herodes Agripa7. São João passou por inúmeros sofrimentos e perseguições por amor ao seu Senhor.
O Senhor “também nos chama a nós e nos pergunta, como a Tiago e a João: Potestis bibere calicem quem ego bibiturus sum? (Mt XX, 22); estais dispostos a beber o cálice – este cálice da completa entrega ao cumprimento da vontade do Pai – que eu vou beber? Possumus (Mt XX, 22). Sim, estamos dispostos, é a resposta de João e de Tiago... Vós e eu estamos dispostos seriamente a cumprir, em tudo, a vontade do nosso Pai-Deus? Demos ao Senhor o nosso coração inteiro, ou continuamos apegados a nós mesmos, aos nossos interesses, à nossa comodidade, ao nosso amor próprio? Há em nós alguma coisa que não corresponda à nossa condição de cristãos e que nos impeça de nos purificarmos? Hoje apresenta-se-nos a ocasião de rectificar”8.
II. “O SENHOR SABIA que os dois Apóstolos poderiam imitá-lo na sua paixão, mas mesmo assim faz-lhes a pergunta, para que todos ouçamos que ninguém pode reinar com Cristo se não o imitar antes na sua paixão; porque as coisas de grande valor só se conseguem a um preço muito alto”9.
Não existe vida cristã sem mortificação; é o seu preço. “O Senhor salvou-nos pela Cruz; com a sua morte, voltou a dar-nos a esperança, o direito à vida. Não o podemos honrar se não o reconhecermos como nosso Salvador, se não o honrarmos no mistério da Cruz... O Senhor fez da dor um meio de redenção; com a sua dor redimiu-nos, sempre que não nos recusemos a unir a nossa dor à sua e a fazer dela, com a sua, um meio de redenção”10.
O espírito de penitência e de mortificação manifesta-se na nossa vida corrente, nas tarefas de cada dia, sem termos de esperar por ocasiões extraordinárias. “Penitência é o cumprimento exacto do horário que marcaste, ainda que o corpo resista ou a mente pretenda evadir-se em sonhos quiméricos. Penitência é levantar-se na hora. É também não deixar para mais tarde, sem um motivo justificado, essa tarefa que te é mais difícil ou trabalhosa.
“A penitência está em saberes compaginar todas as tuas obrigações – com Deus, com os outros e contigo próprio –, sendo exigente contigo de modo que consigas encontrar o tempo de que cada coisa necessita. És penitente quando te submetes amorosamente ao teu plano de oração, apesar de estares esgotado, sem vontade ou frio.
“Penitência é tratar sempre com a máxima caridade os outros, começando pela tua própria casa. É atender com a máxima delicadeza os que sofrem, os doentes, os que padecem. É responder com paciência aos que nos incomodam e inoportunos. É interromper ou modificar os programas pessoais, quando as circunstâncias – sobretudo os interesses bons e justos dos outros – assim o requerem.
“A penitência consiste em suportar com bom humor as mil pequenas contrariedades da jornada; em não abandonares a tua ocupação, ainda que de momento te tenha passado o gosto com que a começaste; em comermos com agradecimento o que nos servem, sem importunar ninguém com caprichos.
“Penitência, para os pais e, em geral, para os que têm uma missão de governo ou educativa, é corrigir quando é preciso fazê-lo, de acordo com a natureza do erro e com as condições de quem necessita dessa ajuda, sem fazer caso de subjectivismos néscios e sentimentais.
“O espírito de penitência leva a não nos apegarmos desordenadamente a esse bosquejo monumental de projectos futuros, em que já previmos quais serão os nossos traços e pinceladas mestras. Que alegria damos a Deus quando sabemos renunciar às nossas garatujas e pinceladas de mestrinhos, e permitimos que seja Ele a acrescentar os traços e as cores que mais lhe agradem!”11
III. OS OUTROS DISCÍPULOS, que tinham ouvido o diálogo de Jesus com os dois irmãos, começaram a indignar-se. Então o Senhor disse-lhes: Sabeis que os chefes das nações as subjugam, e que os grandes as governam com autoridade. Não seja assim entre vós. Todo aquele que quiser tornar-se grande entre vós faça-se vosso servo. E aquele que quiser tornar-se entre vós o primeiro faça-se vosso escravo. Pois o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por uma multidão12.
O serviço de Cristo à humanidade tem em vista a salvação. A nossa atitude deve ser a de servir a Deus e aos outros com sentido sobrenatural, especialmente no que se refere à salvação, mas também em todas as ocasiões que se apresentem em cada dia. Devemos servir mesmo àqueles que não no-lo agradecem, sem esperar nada em troca. É a melhor maneira de darmos a vida pelos outros, de um modo eficaz e discreto, e de combatermos o nosso egoísmo, que tende a roubar-nos a alegria.
A maior parte das profissões é um serviço directo aos outros: as donas de casa, os comerciantes, os professores, as empregadas domésticas, todos eles, de um modo mais ou menos directo, realizam um serviço. Oxalá não percamos de vista este aspecto, que contribuirá para nos santificar no trabalho.
O espírito de serviço exige mortificação e esquecimento próprio, e por isso haverá ocasiões em que colidirá com a mentalidade de muitos que só pensam em si mesmos. Para nós, cristãos, servir é o “nosso orgulho” e a nossa dignidade, porque assim imitamos Cristo, e porque, para servirmos voluntariamente, por amor, temos de pôr em prática muitas virtudes humanas e sobrenaturais. “Esta dignidade manifesta-se pela disposição de servir segundo o exemplo de Cristo, o qual não veio para ser servido, mas para servir. Se, portanto, à luz da atitude de Cristo, é só servindo que se pode verdadeiramente reinar, por outro lado o servir reclama tal maturidade espiritual que se torna necessário defini-lo precisamente como reinar. Para se poder servir digna e eficazmente os outros, é necessário saber dominar-se, é necessário possuir as virtudes que tornam possível tal domínio”13.
Não nos importemos de servir e ajudar muito os que estão ao nosso lado, mesmo que não recebamos em troca nenhum pagamento ou recompensa. Servir, com Cristo e por Cristo, é reinar com Ele. A nossa Mãe Santa Maria, que serviu a seu Filho e a São José, nos ajudará a dar-nos sem medida nem cálculo.
(1) Mt 20, 21-22; (2) Mt 20, 22; (3) Lc 18, 34; (4) Santa Teresa, Moradas, II, 8; (5) cfr. Sl 16, 5; (6) Is 51, 17-22; (7) cfr. Act 12, 2; (8) São Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 15; (9) São João Crisóstomo, Homilias sobre São Mateus, 35; (10) Paulo VI, Alocução, 24-II-67; (11) São Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 138; (12) Mt 20, 24-28; (13) João Paulo II, Enc. Redemptor hominis, 21.


(Fonte: Website de Francisco Fernández Carvajal)

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