quarta-feira, 6 de outubro de 2021

«Deixar Deus actuar»

Sempre me chamou a atenção o sentido que Josemaria Escrivá dava ao nome Opus Dei; uma interpretação que poderíamos chamar biográfica e que permite entender o fundador na sua fisionomia espiritual. Escrivá sabia que devia fundar algo, e ao mesmo tempo estava convencido de que esse algo não era obra sua: ele não tinha inventado nada: simplesmente o Senhor tinha-se servido dele e, em consequência, aquilo não era obra sua, mas sim a Obra de Deus. Ele era somente um instrumento através do qual Deus tinha actuado.

Ao considerar esta atitude vêm-me à mente as palavras do Senhor recolhidas no evangelho de São João 5, 17: «O Meu Pai trabalha sempre». São palavras pronunciadas por Jesus no curso de uma discussão com alguns especialistas da religião que não queriam reconhecer que Deus pode trabalhar no dia de Sábado. Um debate todavia aberto e actual, de certo modo, entre os homens – incluindo os cristãos – do nosso tempo. Alguns pensam que Deus, depois da criação, se «retirou» e já não mostra nenhum interesse pelos nossos assuntos diários. Segundo este modo de pensar, Deus não poderia intervir no tecido da nossa vida quotidiana; todavia, as palavras de Jesus Cristo indicam-nos antes o contrário. Um homem aberto à presença de Deus dá-se conta que Deus trabalha sempre e de que também actua hoje; por isso devemos deixa-lo entrar e facilitar-lhe que actue em nós. É assim que nascem tantas coisas que abrem o futuro e renovam a humanidade.

Tudo isto ajuda-nos a compreender porque Josemaria Escrivá não se considerava «fundador» de nada, e porque se via somente como um homem que quer cumprir uma vontade de Deus, secundar essa acção, a obra - com efeito – de Deus. Neste sentido, constitui para mim uma mensagem de grande importância o teocentrismo de Escrivá de Balaguer: está em coerência com essas palavras de Jesus essa confiança em que Deus não se retirou do mundo, porque está actuando constantemente; e que a nós apenas nos corresponde pormo-nos à sua disposição, estar disponíveis, sendo capazes de responder à sua chamada. É uma mensagem que também ajuda a superar o que pode considerar-se como a grande tentação do nosso tempo: a pretensão de pensar que depois do big bang, Deus se retirou da história. A acção de Deus «não se deteve» no momento do big bang, antes continua no curso do tempo, tanto no mundo da natureza como no dos homens.

O fundador da Obra dizia: eu não inventei nada; é outro que fez tudo; eu procurei estar disponível e servi-lo como instrumento. a palavra e toda a realidade que chamamos Opus Dei está profundamente enxertada com a vida do Fundador, que ainda que procurando ser muito discreto neste ponto, dá a entender que permanecia em diálogo constante, em contacto real com Aquele que nos criou e actua por nós e connosco.

De Moisés diz-se no livro de Êxodo (33,11) que Deus falava face a face com ele, como um amigo fala com um amigo». Parece-me que, se bem que o véu da discrição esconde alguns pequenos sinais, há fundamento suficiente para muito bem por aplicar a Josemaria Escrivá isso de «falar como um amigo fala com um amigo», que abre as portas do mundo para que Deus possa tornar-se presente, fazer e transformar tudo.

Nesta perspectiva compreende-se melhor o que significa santidade e vocação universal à santidade. Conhecendo um pouco da história dos santos, e sabendo que nos processos de canonização se procura a virtude «heróica» podemos ter, quase inevitavelmente, um conceito errado da santidade porque tendemos a pensar: «isto não é para mim»; «eu não me sinto capaz de praticar virtudes heróicas»; «é um ideal demasiado alto para mim». Nesse caso a santidade estaria reservada para alguns «grandes» dos quais vemos as imagens nos altares e que são muito diferentes de nós, normais pecadores. Essa seria uma ideia totalmente errada da santidade, uma concepção errónea que foi corrigida – e isto parece-me um ponto central – precisamente por Josemaría Escrivá.

Virtude heróica não quer dizer que o santo seja uma espécie de «ginasta» da santidade, que realiza uns exercícios inexequíveis para as pessoas normais. Quer dizer, pelo contrário, que na vida de um homem se revela a presença de Deus, e fica mais patente tudo quanto o homem não é capaz de fazer por si mesmo. Talvez, no fundo, se trate de uma questão terminológica, porque o adjectivo «heróico» foi com frequência mal interpretado. Virtude heróica não significa exactamente que alguém faz coisas grandes por si mesmo, mas que na sua vida aparecem realidades que ele não fez, porque ele só esteve disponível para deixar que Deus actuasse. Por outras palavras, ser santo não é outra coisa que falara com Deus como um amigo fala com o amigo. Isto é a santidade.

Ser santo não implica ser superior aos outros; pelo contrário, o santo pode ser muito débil, e contar com numerosos erros na sua vida. A santidade é o contacto profundo com Deus: é fazer-se amigo de Deus, deixara o Outro operar, o Único que realmente pode fazer com que este mundo seja bom e feliz. Quando Josemaría Escrivá diz que todos os homens são chamados a ser santos, parece-me que, no fundo, está a referir-se à sua experiência pessoal, porque nunca fez, por si mesmo, coisas incríveis, antes se limitou a deixar Deus operar. E, por isso, nasceu uma grande renovação, uma força de bem no mundo, ainda que continuem presentes todas as debilidades humanas.

Verdadeiramente todos somos capazes, todos somos chamados a abrir-nos a essa amizade com Deus, a não nos desprender-mos das suas mãos, a não nos cansarmos de voltar e regressar ao Senhor falando com Ele como se fala com um amigo sabendo, com certeza, que o Senhor é o verdadeiro amigo de todos, também de todos os que não são capazes de fazer por si mesmos coisas grandes.

Por tudo isto compreendi melhor a fisionomia do Opus Dei: a forte ligação que existe entre uma fidelidade absoluta à grande tradição da Igreja, a sua fé, com simplicidade desarmante, e abertura incondicional a todos os desafios deste mundo, seja no âmbito académico, no do trabalho ordinário, na economia, etc. Quem tem este vínculo com Deus, quem mantém com Ele um colóquio ininterrupto, pode atrever-se a responder a novos desafios., e não tem medo; porque quem está nas mãos de Deus, cai sempre nas mãos de Deus. É assim que o medo desaparece e nasce a valentia de responder aos desafios do mundo de hoje.

(Transcrição de uma intervenção oral do Cardeal Joseph Ratzinger publicada no suplemento especial do «Osservatore Romano» de 6 de Outubro de 2002 editado por ocasião da canonização de Josemaria Escrivá, fundador do Opus Dei)

"Deixemos que Deus faça maravilhas"

Surpreendia-me sempre a interpretação que Josemaría Escrivá dava do nome Opus Dei: uma interpretação que poderíamos chamar biográfica e que nos consente compreender o fundador na sua fisionomia espiritual. Escrivá sabia que devia fundar algo, mas estava sempre consciente de que aquele algo não era obra sua, que ele não tinha inventado nada, que simplesmente o Senhor se servia dele. Por conseguinte, aquela não era a sua obra, mas o Opus Dei. Ele era unicamente um instrumento através do qual Deus teria agido.

Ao considerar este facto vieram-me à mente as palavras do Senhor transcritas no Evangelho de João (5, 17): «O meu Pai age sempre». São palavras pronunciadas por Jesus durante um debate com alguns peritos da religião que não queriam reconhecer que Deus pode trabalhar também no sábado. Eis um debate que ainda está aberto, de certa forma, entre os homens – também cristãos – do nosso tempo. Há quem pense que, depois da criação, Deus se «retirou» e não sente mais interesse pelas nossas coisas quotidianas. Segundo este modelo de pensamento, Deus já não poderia entrar no tecido da nossa vida quotidiana. Mas nas palavras de Jesus temos o desmentido. Um homem aberto à presença de Deus apercebe-se de que Deus faz maravilhas ainda hoje: portanto, devemos deixá-lo entrar e agir. E é assim que surgem as coisas que oferecem um futuro e renovam a humanidade.

Tudo isto nos ajuda a compreender por que é que Josemaría Escrivá não se considerava «fundador» de nada, mas apenas uma pessoa que quis cumprir a vontade de Deus, seguir a sua ação, a obra – precisamente – de Deus.Neste sentido, o teocentrismo de Escrivá de Balaguer, coerente com as palavras de Jesus, significa esta confiança no facto de que Deus não se retirou do mundo, que Deus age ainda agora e nós devemos apenas pôr-nos à sua disposição, estar disponíveis, ser capazes de reagir à sua chamada, o que é para mim uma mensagem de grandíssima importância. É uma mensagem que leva à superação daquela que se pode considerar a grande tentação do nosso tempo: isto é, a pretensão de que depois do big bang Deus se tenha retirado da história. A ação de Deus não «parou» no momento do big bang, mas ainda continua ao longo do tempo, quer no mundo da natureza quer no mundo humano.

Portanto, o fundador da Obra dizia: não fui eu que inventei algo; é o Outro que o faz e eu estou apenas disponível para servir de instrumento. Assim este título, e toda a realidade a que chamamos Opus Dei, estão profundamente relacionados com a vida interior do fundador que, mesmo permanecendo muito discreto neste ponto, nos faz compreender que estava em diálogo permanente, em contacto real com Aquele que nos criou e age por nós e connosco. O livro do Êxodo diz de Moisés (33, 11) que Deus falava com ele «face a face, como um amigo fala com outro amigo». Parece-me que, mesmo se o véu da discrição nos esconde tantos pormenores, contudo daqueles pequenos acenos resulta que se pode aplicar muito bem a Josemaría Escrivá este «falar como um amigo que fala com outro amigo», que abre as portas do mundo para que Deus se possa fazer presente, agir e transformar tudo.

Sob esta luz compreende-se também melhor o que significa santidade e vocação universal à santidade. Conhecendo um pouco a história dos santos, sabendo que nos processos de canonização se procura a virtude «heróica», temos quase inevitavelmente um conceito errado da santidade: «Não é para mim», somos tentados a pensar, «porque eu não me sinto capaz de realizar virtudes heróicas: é um ideal demasiado elevado para mim». Então a santidade torna-se uma coisa reservada a alguns «grandes», dos quais vemos as imagens nos altares, e que são muito diferentes de nós, que somos normais pecadores. Mas este é um conceito errado de santidade, uma percepção errónea que foi corrigida – e isto parece-me o ponto central – precisamente por Josemaría Escrivá.

Virtude heróica não significa que o santo faz uma espécie de «ginástica», de santidade, algo que as pessoas normais não conseguem fazer. Ao contrário, significa que na vida de um homem se revela a presença de Deus, isto é, se revela o que o homem por si só e para si não podia fazer. Talvez se trate, no fundo, apenas de uma questão terminológica, porque o adjectivo «heróico» foi mal interpretado. Virtude heróica propriamente não significa que alguém fez grandes coisas sozinho, mas que na sua vida aparecem realidades que ele não fez, porque foi transparente e disponível para a obra de Deus. Ou, por outras palavras, ser santo não é mais do que falar com Deus como um amigo fala com outro amigo. Eis a santidade.

Ser santo não significa ser superior aos outros; antes, o santo pode ser muito débil, pode ter cometido tantos erros na sua vida. A santidade é este contacto profundo com Deus, fazer-se amigo de Deus: é deixar agir o Outro, o Único que realmente pode fazer com que o mundo seja bom e feliz. Por conseguinte, se São Josemaría Escrivá fala da chamada de todos a ser santos, parece-me que, em última análise, está a haurir desta sua experiência pessoal de não ter feito sozinho coisas incríveis, mas de ter deixado agir Deus. E por isso nasceu uma renovação, uma força de bem no mundo, mesmo que todas as debilidades humanas permaneçam sempre presentes. Deveras todos somos capazes, todos somos chamados a abrir-nos a esta amizade com Deus, a não abandonar as mãos de Deus, a não deixar de voltar sempre de novo ao Senhor, falando com Ele como se fala com um amigo, sabendo bem que o Senhor realmente é o verdadeiro amigo de todos, mesmo de quantos não podem fazer grandes coisas sozinhos.

Com tudo isto compreendi melhor a fisionomia do Opus Dei, esta ligação surpreendente entre uma absoluta fidelidade à grande tradição da Igreja, à sua fé, com desarmante simplicidade, e a abertura incondicionada a todos os desafios deste mundo, quer no âmbito académico, quer no do trabalho, da economia, etc. Quem tem este vínculo com Deus, quem mantém este diálogo ininterrupto pode ousar responder a estes desafios, e deixa de ter medo; porque quem está nas mãos de Deus cai sempre nas mãos de Deus. É assim que desaparece o medo e nasce, ao contrário, a coragem de responder ao mundo de hoje.

Card. Joseph Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Publicado no Suplemento de 'L’Osservatore Romano', 6-X-2002