quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Oxalá sejas como um velho silhar oculto

Não queiras ser como aquele catavento dourado do grande edifício; por muito que brilhe e por mais alto que esteja, não conta para a solidez da obra. – Oxalá sejas sempre como um velho silhar oculto nos alicerces, debaixo da terra, onde ninguém te veja; por ti não desabará a casa. (Caminho, 590)

Deixa-me que te recorde, entre outros, alguns sinais evidentes de falta de humildade:
– pensar que o que fazes ou dizes está mais bem feito ou mais bem dito do que o que os outros fazem ou dizem;
– querer levar sempre a tua avante;

– discutir sem razão ou, quando a tens, insistir com teimosia e de maus modos;

– dar a tua opinião sem ta pedirem ou sem a caridade o exigir;

– desprezar o ponto de vista dos outros;

– não encarar todos os teus dons e qualidades como emprestados;

– não reconhecer que és indigno de toda a honra e estima, inclusive da terra que pisas e das coisas que possuis;

– citar-te a ti mesmo como exemplo nas conversas;
– falar mal de ti mesmo, para fazerem bom juízo de ti ou te contradizerem;
– desculpar-te quando te repreendem;
– ocultar ao Director algumas faltas humilhantes, para que não perca o conceito que faz de ti;
– ouvir com complacência quem te louva, ou alegrar-te por terem falado bem de ti;
– doer-te que outros sejam mais estimados do que tu;
– negar-te a desempenhar ofícios inferiores;
– procurar ou desejar singularizar-te;
– insinuar na conversa palavras de louvor próprio, ou que dão a entender a tua honradez, o teu engenho ou destreza, o teu prestígio profissional...;
– envergonhar-te por careceres de certos bens... (Sulco, 263)

São Josemaría Escrivá

Pombal e aquele Verão de 1759

Férias! Rolo pela estrada a caminho de uma actividade com estudantes universitários. Que gosto, encontrar aquela juventude entusiástica! Sonho também com algumas excursões através do campo, atravessando rios e montes. A tabuleta da estrada que anuncia «Pombal» distrai-me. Evoco mentalmente aquele homem estranho, diferente de tudo o que alguma vez tivemos em Portugal. Como foi possível?

Começou como um fidalgo sem ocupação, até saltar para a embaixada de Londres aos 40 anos, ser chamado para Secretario de Estado dos Negócios da Guerra e Estrangeiros aos 51 e começar, pouco depois, um mandato ininterrupto de Primeiro Ministro, que durou 27 anos. Ao fim de 9 anos, recebeu o título de Conde de Oeiras e terminou as funções senhor de uma imensa fortuna e com o título de Marquês de Pombal.

D. José, o Rei que o chamou para o Governo, sofria desequilíbrios que o afundavam em vícios e destemperos, ao mesmo tempo que alimentava loucuras de dominador absoluto. A história dos reis portugueses e da sua corte tem a marca dos cruzamentos endogâmicos, que produz feições disformes e personalidades imaturas, como aconteceu com este Rei. A frieza de Pombal ajustava-se perfeitamente aos seus planos, porque qualquer pretexto lhe servia para matar pessoas; às vezes, uma centena em cada leva; em muitos casos, por razões fúteis; tantas vezes, sem razão nenhuma, nem julgamento, apenas para manter o terror. Nunca existiu em Portugal tanta violência, nem tão sistemática, como instrumento de poder.

O absolutismo de D. José e do seu Primeiro Ministro apontava para o modelo de Inglaterra, em que o monarca era simultaneamente a autoridade religiosa, talvez com as variantes que o fenómeno tinha com Luís XIV, ou com o Josefismo na Áustria. Proibiam-se documentos pontifícios, nomeavam-se bispos à revelia do Papa, expulsava-se o Núncio, metiam-se na prisão, com maus tratos, os bispos fiéis a Roma e tudo isso culminou em 1759 com a abolição quase completa do sistema educativo português e a expulsão dos jesuítas. Na altura, havia 861 jesuítas em Portugal, que dirigiam a universidade de Évora, tinham uma presença importante na universidade de Coimbra, mantinham 20 colégios gratuitos, com milhares de alunos, e mais de 20 outras instituições de formação.
Pombal tinha apenas uns rudimentos de instrução formal, o que se notava nos decretos em que punha um empenho mais pessoal. Neste caso, as deficiências da redacção contrastam com o arrojo do propósito. Exercendo violência contra os professores e deixando dezenas de milhares de alunos sem aulas, Pombal anunciava, a um país libertado, o triunfo da cultura e da ciência.

Parte da estratégia consistia em substituir a instrução gratuita, aberta a todo o povo, por uma instrução reservada aos nobres. Assim, dois anos depois de fechadas as escolas dos jesuítas, cria-se o Colégio dos Nobres. Como não encontrou quem os pudesse ensinar, o colégio só começou a funcionar 5 anos depois da fundação, porque foi preciso recrutar o corpo docente e os directores em Itália, e algumas matérias ainda começaram com maior atraso. Inaugurou-se com 24 crianças fidalgas, caprichosas e habituadas a bater nos criados. Os professores italianos aguentaram pouco e o colégio fechou.

As promessas de transformar a Universidade de Coimbra num grande centro de cultura e investigação também não tiveram êxito. Destruiu-se muito do que havia e, no primeiro ano de funcionamento das novas faculdades, em Matemática matricularam-se 8 estudantes, um morreu, 2 desistiram e 5 acabaram o curso. No segundo ano lectivo, inscreveram-se 2 alunos, dos quais 1 desapareceu sem ter ido às aulas. Nos terceiro, quarto e quinto anos lectivos não se matriculou ninguém. Em 5 anos de funcionamento, a faculdade de Filosofia teve ainda menos alunos, um total de 4.

Em 1759, Portugal expulsa os jesuítas. Em 1773, sob ameaça de cisma, o Papa Clemente XIV acedeu a suprimir a Companhia de Jesus. Em Lisboa, a vitória celebrou-se nas ruas e nos templos e as janelas enfeitaram-se com luzes, depois de o Governo ameaçar com graves penas quem não festejasse.

Graças a D. José e a Pombal, Portugal chegou ao final do século XVIII praticamente analfabeto. Com as leis de 1834, 1848 e 1851, que extinguiram as ordens religiosas e fecharam praticamente todas as escolas que restavam, o país manteve-se analfabeto até ao fim do século XIX. A República redobrou as proclamações de progresso, mas a perseguição à Igreja e as contínuas convulsões políticas não contribuíram para melhorar a situação. No Estado Novo, lentamente, demasiado lentamente, começou a recuperar-se, mas já vamos no século XXI e falta muito para alcançarmos os outros países da Europa.

Pombal, terra do profeta de um mundo novo, considerado por alguns como o modelo da democracia, ficou para trás na placa da estrada. Rezei por ele e pelo país que ele deixou, tão pobre e inculto, algumas vezes demasiado cobarde. Um país, também, de gente esplêndida, a quem devo tanto.

José Maria C.S. André
10-VIII-2018
Spe Deus

O enigma do celibato

A abstinência é uma decisão demasiado enigmática para uma sociedade que se diz disposta a compreender todo o campo das variantes sexuais

A nossa época, que aceita todas as inclinações sexuais, mostra-se estranhamente intolerante com o celibato sacerdotal. Num mundo em que já não faz falta militar a favor ou contra uma ou outra orientação amorosa, há gente empenhada em acabar com o celibato dos sacerdotes, como se pusesse em risco a sua própria liberdade. Parece que a abstinência é uma decisão demasiado enigmática para uma sociedade que se diz disposta a compreender tudo no campo das variantes sexuais.

Como proibi-lo seria repressivo, diz-se que o celibato deveria ser opcional. O que não deixa de ser um contra-senso. Pode-se estar a favor ou contra o celibato sacerdotal, mas declará-lo opcional é uma cortina de fumo. O celibato é sempre opcional, pois não se obriga ninguém a ser sacerdote ou religioso; cada um se apresenta como candidato a esse estilo de vida e é aceite ou não pela Igreja. Do mesmo modo que ninguém está obrigado a casar-se - seja leigo ou sacerdote, homem ou mulher, católico ou budista -, deixar que o celibato sacerdotal seja opcional é o mesmo que suprimi-lo, porque então o sacerdote fica na mesma situação de qualquer outra pessoa.

Também se teria de ter em conta que muitas outras pessoas se vêem "obrigadas" a viver em situações similares ao celibato, embora não o escolham. Nem todas as pessoas vivem em casal. Em Espanha, segundo o Censo de Poblation y Viviendas de 2001 (o último disponível), 22% dos lares eram unipessoais, ou de um adulto só com crianças. Se excluirmos os lares unipessoais de maiores de 65 anos, restam-nos 12,7% (quase 1,8 milhões de pessoas) onde não há um casal. E, dado o contínuo aumento do número de rupturas matrimoniais (umas 120.000 por ano), os lares sem casal devem ter ido crescendo desde 2001. Perante estes números de "descasalados", os 20.000 sacerdotes e 56.000 religiosas e religiosos espanhóis são apenas uma minoria.

Evidentemente, uma coisa é viver sem parceiro e outra é fazer voto de castidade. Mas, no conjunto, é muito mais provável que os que estão nessa situação durmam sós do que acompanhados.

Vidas com sentido

Então, o celibato (sacerdotal ou civil) não deveria ser visto como um modo de vida estranho nem infrutuoso. De facto, para não poucas pessoas o celibato - escolhido ou aceito - foi o modo de vida que lhes permitiu desenvolver potencialidades insuspeitadas.

E não só o celibato por motivos religiosos. A Primeira Grande Guerra fez com que 1,7 milhões de britânicas ficassem sem contemporâneos com quem casar. Mulheres em plena juventude, que haviam sido educadas para o matrimónio, e que tiveram de refazer as suas vidas. A sua reacção está magnificamente descrita no livro de Virgínia Nicholson, Ellas solas (cfr. www.aceprensa.com, 17-03-09). Essas mulheres que não puderam casar-se começaram a fazer coisas insólitas no ambiente vitoriano: saíram em busca de trabalho; viveram por sua conta; tornaram-se financeiramente independentes; pediram o voto feminino; lutaram pelos direitos das trabalhadoras; promoveram actividades culturais, eclesiásticas e de beneficência... Souberam dar um sentido à sua vida com um valor e uma liberdade que dificilmente lhes teria permitido o casamento daquela época.

Essa entrega aos outros é justamente o que surpreende a nossa sociedade, quando se encontra perante a figura do missionário, que não abandona o seu posto em situações de conflito, do sacerdote que tem um título universitário e opta por servir uma comunidade sem chegar sequer a receber mil euros, ou de uma religiosa como a Madre Teresa de Calcutá que só ia acompanhada por alguma das suas monjas para ir cuidar dos pobres. Se tivessem uma família própria, nada disso seria possível.

E, sem ser preciso recorrer a dedicações especiais, todos sabemos o que representa em muitas famílias a presença dessa tia solteira, que tem a sua vida própria, mas também está disposta a dar uma mão, a suavizar tensões, a intervir em conflitos e orientar os mais novos.

O importante, tanto no celibato sacerdotal como no civil, é o sentido que se dá à vida. Certamente ninguém vai para o seminário apenas com o propósito de viver o celibato. Essa renúncia, que o é sem dúvida, está ao serviço de uma maior liberdade para amar Jesus Cristo e servir a Igreja e os fiéis. A abstinência das relações sexuais não supõe, de maneira alguma, que o sacerdote negue a sua sexualidade, mas que a viva com liberdade dentro de um estilo de vida que deve estar cheio de sentido transcendente.

Quando se perde de vista este sentido, como acontece em muitos sectores da sociedade actual, a opção do celibato torna-se opaca. Olha-se com cepticismo que Deus possa encher o coração e, pelo contrário, pensa-se que uma mulher o conseguiria por inteiro e para sempre; fala-se do ideal do sacerdote casado como se ele fosse viver em plena lua-de-mel e constituir a família exemplar que iluminaria os fiéis. Mas depois do sacerdote casado poderia vir o sacerdote divorciado.

Um sim incondicional

A razão mais profunda do celibato sacerdotal não se reduz à maior disponibilidade que permite. É um testemunho de que "só Deus preenche", e por isso desconcerta aqueles que vêem as coisas apenas com visão humana. Bento XVI dizia há pouco, no encerramento do Ano Sacerdotal: "para o mundo agnóstico, o mundo com o qual Deus não tem nada a ver, o celibato é um grande escândalo, porque mostra precisamente que Deus é considerado e vivido como realidade".

Também observava que esta crítica permanente contra o celibato pode surpreender, numa época em que está cada vez mais na moda não casar. Mas esse tipo de celibato não tem muito a ver com os motivos do celibato sacerdotal. " Este ‘celibato moderno' - dizia Bento XVI - é um ‘não' à definitividade, um ter a vida só para si mesmo. Por outro lado, o celibato é precisamente o contrário: é um ‘sim' definitivo, é um deixar-se conduzir por Deus, entregar-se nas mãos do Senhor". Por isso, tão radical é hoje o celibato por motivos religiosos, como o casamento entendido como uma união indissolúvel, por cima das contingências da vida e dos altos e baixos dos sentimentos.

Este desafio do celibato por Deus é o que incomoda os que gostariam que a mensagem da Igreja se diluísse cada vez mais, conforme aos critérios da sociedade actual. Nietzsche observou-o com perspicácia para o combater: "Lutero devolveu ao sacerdote a relação sexual com a mulher, mas três quartos da veneração de que o povo é capaz baseia-se na crença de que um homem excepcional neste ponto sê-lo-á também noutros pontos. E aqui tem a fé do povo em algo sobre-humano no homem, seu advogado mais subtil e capcioso"(1).

Mas o excepcional não está no homem, como também se põe de manifesto nos casos em que o sacerdote falha. O extraordinário é que continua a haver candidatos a esse "sim" definitivo. A nossa sociedade, tão zelosa do "livre desenvolvimento da personalidade" deveria respeitá-lo.

NOTAS

(1) Fr. Nietzsche, Die fröhliche Wissenschaft, Leipzig, 1887, p. 295. Citado por Juan Bautista Torelló en El celibato sacerdotal, EUNSA, Pamplona (2010) pg. 205.

Assinado por Ignacio Aréchaga

Aceprensa