sexta-feira, 12 de junho de 2020

O capacete do Eng. Perestrello

A Administração e alguns Directores do estaleiro acompanham membros do Governo numa visita oficial em 1965. Não era só o Eng. Perestrello a usar capacete, mesmo nestas ocasiões.
A maior parte das histórias que conheço da vida profissional do meu Pai foram-me contadas por outros, mas ele abria excepções a esta reserva quando não era o protagonista, ou quando se via como testemunha passiva dos acontecimentos. Foi assim que conheci, através dele, a história dos capacetes.

O assunto era muito importante para o meu Pai, empenhado em promover a segurança dos operários nos estaleiros navais de Lisboa. Uma das suas iniciativas foi comprar capacetes de protecção e pedir aos Directores de cada Departamento que os distribuíssem ao pessoal. A seguir, visitou cada zona de trabalho para verificar se as instruções estavam a ser cumpridas. Infelizmente, em toda a parte estava montada uma autêntica «guerra civil». De um lado, os trabalhadores queixavam-se de que era impossível trabalhar com capacete, de que os capacetes faziam mal à saúde e até criavam situações de perigo. Do outro lado, os Directores não cediam no uso obrigatório dos capacetes ainda que, na melhor das hipóteses, só conseguissem vitórias momentâneas, que não duravam mais do que o tempo de eles virarem as costas. A guerra ainda não tinha começado no Departamento do Eng. Perestrello, porque ele, em vez de distribuir imediatamente os capacetes, seguiu outra estratégia.

Vale a pena apresentar brevemente o Eng. Perestrello. Embora eu não o tenha conhecido directamente, ouvi testemunhos. Era um homem alto, elegante. Herdara da sua família ilustre um certo toque de classe, ainda que ele fosse tão acessível e natural que o relacionamento era descontraído e agradável, sem se notarem as diferenças hierárquicas. Apreciava cada pessoa, gostava de conversar e de conviver, e toda a equipa, desde os operários aos engenheiros e aos colegas da Direcção, reconhecia a sua liderança. Chegaria a ser o Administrador-Delegado do estaleiro da Lisnave.

Como disse, quando recebeu instruções para distribuir os capacetes, o Eng. Perestrello não se apressou. Começou por reunir a Direcção e os engenheiros e combinar que eles próprios passariam a usar capacete. No dia seguinte, mal desceu às oficinas, com o seu capacete, foram os operários que se dirigiram a ele e lhe pediram para também receberem capacetes: «se os Directores e os engenheiros usam capacete, muito mais se justifica essa protecção para quem trabalha nas oficinas». Não foram precisos muitos argumentos para o convencer e rapidamente se contabilizou e se distribuiu o número de capacetes necessários.

Nos outros departamentos, a tensão da «guerra dos capacetes» arrastou-se por mais tempo e a melhoria das condições de segurança no estaleiro, neste domínio e noutros, exigiu um esforço enorme e persistente. Só no departamento do Eng. Perestrello as coisas eram diferentes. Aí – contava o meu Pai –, os operários almoçavam de capacete na cabeça.

As máscaras faciais, as viseiras e todas as regras de segurança que as autoridades estabeleceram para o actual tempo de pandemia recordam-me os capacetes do estaleiro naval nos anos sessenta. Algumas pessoas sentem verdadeira repugnância em cumprir as regras e estão convencidas de que as exigências são inúteis, ou até prejudiciais. Sobretudo quando o Governo, ou até as autoridades eclesiásticas, dão directivas concretas em relação às igrejas e às cerimónias religiosas, ferve-lhes o sangue de indignação pelo desprezo das coisas de Deus e o desrespeito pela liberdade fundamental de Lhe prestar culto. Realmente, a obediência é uma virtude difícil quando choca com o nosso ponto de vista.

Talvez uns líderes tenham mais jeito que outros para facilitar a obediência. Em todo o caso, é interessante reparar como – dependendo da perspectiva com que vemos as situações – a mesma coisa nos parece intolerável ou a consideramos um direito honrosamente conquistado.

Talvez a obediência mais custosa tenha mais mérito e dê mais alegria a Deus. Ainda que talvez, com alguma distância emocional, acabemos por reconhecer que «não era caso para tanto».
José Maria C.S. André

Agora é Cristo quem vive em ti!

Os teus parentes, os teus colegas, os teus amigos, vão notando a diferença, e reparam que a tua mudança não é uma mudança passageira; que já não és o mesmo. Não te preocupes. Para a frente! Cumpre o "vivit vero in me Christus" – agora é Cristo quem vive em ti! (Sulco, 424)

Qui habitat in adiutorio Altissimi in protectione Dei coelí commorabitur – Habitar sob a proteção de Deus, viver com Deus: eis a arriscada segurança do cristão. É necessário convencermo-nos de que Deus nos ouve, de que está sempre solícito por nós, e assim se encherá de paz o nosso coração. Mas viver com Deus é indubitavelmente correr um risco, porque o Senhor não Se contenta compartilhando; quer tudo. E aproximar-se d'Ele um pouco mais significa estar disposto a uma nova rectificação, a escutar mais atentamente as suas inspirações, os santos desejos que faz brotar na nossa alma, e a pô-los em prática.

Desde a nossa primeira decisão consciente de viver integralmente a doutrina de Cristo, é certo que avançámos muito pelo caminho da fidelidade à sua Palavra. Mas não é verdade que restam ainda tantas coisas por fazer? Não é verdade que resta, sobretudo, tanta soberba? (Cristo que passa, 58)

São Josemaría Escrivá

Minoria?

Há muitos anos, o senhor falava em termos proféticos sobre a Igreja do futuro: a Igreja - dizia então - reduzir-se-á nas suas dimensões, e será preciso começar novamente. Mas desta prova sairá uma Igreja que terá obtido uma grande força do processo de simplificação pelo qual terá passado, da sua renovada capacidade de olhar para dentro de si mesma. Qual é a perspectiva que nos espera na Europa?

Para começar, a Igreja "reduzir-se-á numericamente". Quando fiz esta afirmação, choveram-me de toda a parte censuras de pessimismo. Hoje, quando todas as proibições parecem ter caído em desuso, entre elas as que dizem respeito ao que se vem chamando pessimismo - o qual, com frequência, não passa de um sadio realismo -, cada vez são mais os que admitem que a percentagem dos cristãos baptizados na Europa vem diminuindo: numa cidade como Magdeburgo, é de apenas 8% da população total, incluindo-se aí todas as confissões cristãs. Os dados estatísticos mostram tendências irrefutáveis. Neste sentido, reduz-se a possibilidade de identificação entre povo e Igreja em determinadas áreas culturais. Devemos tomar nota disto com simplicidade e realismo.

A Igreja de massas pode ser algo muito bonito, mas não é necessariamente a única modalidade do ser Igreja. A Igreja dos primeiros três séculos era pequena, sem que por isso fosse uma comunidade sectária. Pelo contrário, não estava fechada sobre si mesma, mas sentia uma grande responsabilidade pelos pobres, pelos doentes, por todos. No seu seio encontravam abrigo todos aqueles que se nutriam de uma fé monoteísta e estavam à busca de uma promessa. Essa consciência de não ser um clube fechado, mas de estar aberta à comunidade no seu conjunto, sempre foi um componente intrínseco da Igreja.
[...]
Devemos tomar nota da diminuição das nossas fileiras, mas devemos continuar igualmente a ser uma Igreja aberta. A Igreja não pode ser um grupo fechado, auto-suficiente.

Devemos, sobretudo, ser missionários, no sentido de voltar a propor à sociedade aqueles valores que são os fundamentos da forma legal que a sociedade deu a si mesma, e que estão na base da própria possibilidade de construir qualquer comunidade social verdadeiramente humana. A Igreja continuará a propor os grandes valores humanos universais. Porque, se o Direito deixa de ter fundamentos morais compartilhados por todos, desmorona também como Direito. Deste ponto de vista, a Igreja tem uma responsabilidade universal. Responsabilidade missionária significa precisamente, como diz o Papa, empreender verdadeiramente uma nova evangelização.

Não podemos aceitar tranquilamente que o resto da Humanidade volte a precipitar-se no paganismo; devemos encontrar o caminho para levar o Evangelho também aos não crentes.

A Igreja deve recorrer a toda a sua criatividade para fazer com que não se apague a força viva do Evangelho.

(Cardeal Joseph Ratzinger in ‘Dios y el mundo’; repr. no ‘Avvenire’ de 27.09.2001)