Tornando
às múltiplas lições que se podem retirar da presente situação, contentar-me-ei
por realçar só uma, que me parece a principal: a pequenez do homem, como
indivíduo, de que falava Eugénio Viassa Monteiro, mas, sobretudo, a fraqueza de
todas as criações humanas.
Pelo menos desde a Revolução
Francesa que lavra no Ocidente uma tendência, mais ou menos vincada conforme os
lugares e os momentos, para substituir a religião de Deus pela religião do
estado, novo deus dos nossos dias. Estou crente em que, muito mais que o
espantalho do islão que muitos agitam, é esse o verdadeiro inimigo da Europa,
pois consome-a por dentro. É verdade que o grande afluxo de muçulmanos, sejam
refugiados, sejam trabalhadores em busca de melhor vida, faz temer o risco de
ver a Europa cristã afogada em gente
moira, como se diz em Goa. É verdade que o terrorismo, que ontem se valia
do anarquismo, de marxismo-leninismo ou do maoismo, se estriba hoje quase
exclusivamente no islamismo; mas não menos verdade é que a esmagadora maioria
dos muçulmanos não são terroristas. De qualquer modo o islão é um sistema que
liga intimamente religião e política, e que tem dificuldade em se adaptar fora
da proteção de um estado confessional e prescindir do seu poder coercitivo,
pelo que uma maioria muçulmana representa realmente uma eventualidade
preocupante.
Seja como for, não me parece que
resida no islamismo a principal ameaça à civilização ocidental, mas antes no
vírus que a corrói do interior. E esse é o confinamento de Deus, como se
estivesse empestado, e a correlativa exaltação do estado como um deus.
Sempre gostaram os governantes de
se apresentar como superiores aos outros, e em muitas monarquias antigas, como
o Egito ou o Camboja de Angkor, o rei era considerado uma divindade. É talvez
por isso que expressões como "adorai o Senhor todos os reis da Terra"
são recorrentes na Bíblia, particularmente nos salmos. Havia que reduzir os
monarcas às suas verdadeiras dimensões!
Hoje, não penso que quejanda concepção
possa ser crível. Substituiu-a, porém, uma concepção afim, mais subtil mas não
menos perigosa: a divindade do estado. Se o Dalai-Lama é suposto ser uma
reencarnação do bodhisattva Avalokiteśvara,
"o Compassivo senhor", o estado moderno olha-se a si mesmo como
corporização da racionalidade. Mas não há pior tirania do que a da
racionalidade, pois quem se não conforma com quem julga detê-la, a si mesmo se
exclui do número dos racionais. E o Transcendente? E o Infinito? Caberão no
racional?
Enumeremos
algumas aberrações. Por exemplo a constituição mexicana de 1917 afirmava,
logo no seu primeiro artigo, que todo o cidadão gozaria de tais e tais
direitos, "que lhe concede o Estado". Por conseguinte o homem não era
sujeito de direitos por ser, à imagem de Deus, uma pessoa e um ser livre, mas
por magnânima concessão do estado — de que os indivíduos constituiriam, por assim
dizer, meramente o conteúdo…
Não é, contudo, só no México jacobino
de começos do século XX que topamos com tais desvarios: ainda há bem pouco
tempo, salvo erro em 2012, o governo francês decretou que o massacre dos
arménios da Turquia em 1915 foi um genocídio,
cominando penas a quem o contrário disser. Noutros países é proibido negar o holocausto dos judeus na segunda guerra
mundial. Não se trata de punir, genericamente, quem para fins políticos ou
semelhantes falsifique a História: trata-se de impor sobre casos bem
determinados, uma verdade oficial, que o estado, omnisciente, conhece
infalivelmente, embora os cidadãos se possam enganar — e isto para não discutir
já esta espécie de neo-nominalismo, para o qual mais importante que as coisas é
o nome que se lhes dá. Infelizmente pouca gente nota o totalitarismo latente
que se esconde por detrás de tal legislação. E ninguém pensa que se de hoje
para amanhã advier um governo anti-arménio ou anti-judaico pode decretar o
contrário, e a mentira tornar-se-á verdade, e a verdade mentira…
Em Portugal D. João III
criou em 1532 a Mesa da Consciência e Ordens para o ajudar na resolução de
casos "que tocavam à obrigação de sua consciência". Era uma junta de
letrados, teólogos, juristas, moralistas, escolhidos pelo seu mérito, que deram
muitas vezes sentenças contra o próprio Rei. Em Inglaterra há ainda
"tribunais de equidade" que julgam casos não regulados pela lei
escrita, conforme o que parece justo e equitativo — em última análise, conforme
a lei eterna, de que todo o homem tem uma noção mais ou menos clara; mas na
maior parte dos países não há senão "tribunais constitucionais" , que
verificam se as leis que os homens fazem hoje estão de acordo com a lei que
fizeram ontem.
Em vários países é proibido o uso
da burka muçulmana. Porquê? Porque
permite que debaixo dela se esconda o assassino ou o ladrão? Porque neutraliza
as câmaras de televisão que, para segurança de todos, existem nos supermercados
e outros espaços públicos? Não. Porque é um "sinal religioso demasiado
visível"! Mas acaso a religião é uma coisa vergonhosa que se não possa
manifestar em público? O estado moderno é contudo alérgico à ideia de que acima
dele possam existir instâncias mais elevadas…
Sempre houve pessoas que, ou por a
ideia de Deus lhes causar incómodos, ou por dificuldade em conceber o Infinito,
não acreditaram n'Ele. Disso se queixam já os salmos 13 e 52, que ambos começam
pela mesma frase: "Diz o estulto em seu coração: não existe Deus". No
entanto o ateísmo moderno, seja sob a forma virulenta que lhe conhecemos no
comunismo ou no nazismo, seja sobre a forma insidiosa que hoje se insinua na
nossa cultura, vai mais longe: pretende-se explicitamente construtivo, ou seja,
quer refundar o mundo, substituindo ao Universo, concebido e presidido por
Deus, um outro, ao sabor da sua Ideia.
Num belo livro, escrito sob a
ocupação da França pelos nazis, entre 1942 e 1946, o jesuíta francês Henri de
Lubac, após percorrer os grandes desvarios da nossa época conclui, citando um
belo texto de S. Gregório de Nissa: banido Deus do mundo, o Homem, feito à Sua
imagem perde a razão de ser da sua dignidade. De facto, se ao Universo não
preside um Ser livre, inteligente e soberano, o homem queda reduzido a mero
dente de uma das rodas dentadas da grande engrenagem em que consiste o mundo. E
a máquina do mundo tritura-o.
Suprimido Deus, não é apenas o Homem
que fica reduzido a uma peça do mecanismo do cosmo e cessa de ser pessoa: é a hierarquia dos valores que queda
sem sentido e sem princípio. A liberdade de religião torna-se mais importante
do que a religião em si, o carneiro mais digno do que o Homem, e assim
sucessivamente. Daí o politeísmo jurídico
que tende a invadir a vida pública. E cada divindade, cada pequeno deus, exige
que se lhe erga o seu altar e reclama sacrifícios… Dois ou três exemplos
bastam.
Há pouco meses ainda, todos
pudemos ouvir na televisão o primeiro-ministro da Dinamarca declarar (talvez na
melhor das intenções, só Deus, que perscruta os corações dos homens o sabe ao
certo) a propósito do abate de animais nos matadouros: "os direitos dos
animais são mais importantes do que a religião"! Direito é, nesta acepção, um título ou prerrogativa que uma pessoa
pode exigir ou reivindicar. Muito gostaria de ver ainda um dia, não digo já uma
lesma ou uma minhoca, mas um cão ou um gato reivindicar em tribunal os seus
direitos… Não seremos nós, seres racionais, que temos deveres para com os animais? Mas adentro da religião dos direitos
individuais não há já espaço para deveres. E assim fica a religião, que eleva o
homem até Deus e o diviniza, rebaixada a um nível inferior ao dos próprios
animais…
E que dizer da sentença magistral
que há tempos proferiu um juiz, salvo erro do tribunal europeu dos direitos
humanos, sobre os títulos de renda vitalícia que os bancos e mutualidades
disponibilizam? É evidente que, para não terem prejuízo, essas instituições de
crédito se baseiam sobre o cálculo das probabilidades, levando em conta as
estatísticas da duração da vida humana. Ora como toda a gente sabe, as mulheres
duram em média mais que os homens, nuns países mais, noutros menos, nalguns
cerca de dez anos. Por isso para o mesmo capital os bancos atribuíam aos
varões, que duram menos, rendimento superior ao que atribuíam às fêmeas.
Decretou porém o tal juiz que essa diferença era ilegal, pois contrariava o
princípio inviolável da igualdade dos sexos. Resta agora aos varões um só recurso:
apelarem para a Divina Providência de
Estrasburgo, reivindicando, ao mesmo título, o direito de viverem tanto tempo
quanto as mulheres; e assim ficará resolvido o problema…
E porque não? Se as instâncias
humanas se permitem decretar que um homem pode ser mulher de um outro homem e
que o género é, graças a uma generosa concessão do estado omnipotente, algo que
cada um pode escolher, e não um caráter que lhe imprimiu a natureza?
Não é preciso imaginar que Deus
tenha baixado do céu para castigar o homem, semeando no mundo um vírus destruidor:
é a natureza muda que, sem proferir palavra, reclama os seus direitos, proclamando
que o poder que sobre ela detém o homem tem limites!
O derradeiro exemplo é o mais
trágico e o mais elucidativo. Passou-se pelo Natal, há já talvez uma dezena de
anos. Um americano, monstruosamente gordo, veio passar as férias do Natal a
Itália. À vinda não teve problemas. No regresso, contudo, no aeroporto de Milão
levantaram dificuldades ao seu embarque porque não havia cinto de segurança que
o abrangesse. Depois de muito discutir e de andar de Herodes para Pilatos
acabaram por lhe aconselhar que fosse para Genebra de comboio, pois aí
ser-lhe-ia mais fácil embarcar, não sei bem por que razão: ou porque houvesse
aí cintos de calibre mais elevado, ou porque fossem menos rigorosos na inspeção,
ou talvez porque na cidade em que nasceu a Sociedade das Nações e foram
proclamados os Direitos do Homem o compreendessem melhor; não sei. Só que o
estratagema não deu os resultados que se esperavam. Também ali lhe levantaram
problemas; e foi esperando. E assim, enquanto o caso não era resolvido pelas
sucessivas instâncias por que transitou, passou uma semana inteira nos bancos
do aeroporto; e acabou por ali morrer.
O homem morreu; mas salvou-se o
mais importante de tudo: a ideia da
segurança do Homem. Não será assim posta em causa a eficácia infalível das
regras que o Homem faz!
Não foi, pois, só em Cartago e no
México pré colombino que os ídolos exigiam sacrifícios humanos!
Retomando a bela expressão de
Eugénio Viassa Monteiro, "A atual crise do vírus mostrou
ao homem a sua pequenez". E não só: mostrou também a das suas
instituições, bem como a fragilidade dos vários ídolos que criou — todos, como o do sonho de Nabucodonosor (Dan 2, 32-43), de pés de barro…
Através da presente epidemia é
como se Deus de novo pela boca de Moisés nos dissesse:
Onde estão os seus deuses, o
rochedo onde buscavam refúgio? Junto a quem consumiam a gordura das vítimas e bebiam
o vinho de suas libações…
Que se ergam e vos socorram e na necessidade vos
protejam! (Deut 32, 38).
(continua, são no total VII reflexões)