Há cerca de 2 mil anos, S. Paulo
escreveu uma carta aos romanos, que continua a ser um dos textos da Bíblia mais
estudados, pela inesgotável riqueza teológica, em particular, os últimos 14
versículos do capítulo 1 (o versículo 18 até ao 32), que têm a forma de um
raciocínio dedutivo: A ocasiona B, B produz C... É um encadeamento inflexível,
que descreve uma aluvião a abater-se sobre a dignidade humana quando o homem se
afasta de Deus. Esse afastamento tem consequências tão graves? É esse o ponto: sim,
tropeça-se nesse ponto, resvala-se, perde-se o equilíbrio e acaba-se numa
derrocada fragorosa.
Poucas sociedades experimentaram
até ao fim esta sequência dramática, porque, na maior parte das civilizações, os
sinais de alarme despertaram as consciências e evitaram que se caísse nos
últimos degraus da humilhação humana. É interessante ler o tal raciocínio dedutivo.
Versículo 21: «Tendo conhecido
Deus, não O glorificaram nem Lhe deram graças».
– A queda começa pela perda do
sentido da verdade: «extraviaram-se em raciocínios vãos e a sua mente insensata
ficou na obscuridade».
Versículo 23: «Por isso [a
conclusão decorre como um silogismo], foram abandonados aos desejos do seu
coração, Deus entregou-os a uma impureza que desonra os seus próprios corpos».
– Derrubada a verdade,
desmorona-se a moral, em particular a compreensão da dignidade humana: «como
substituíram a verdade de Deus pela mentira (...), Deus entregou-os a paixões
vergonhosas». A carta aponta a contracepção e a homossexualidade como exemplos
mais flagrantes da corrupção: «as mulheres substituíram as relações naturais...
os homens arderam em desejos uns com os outros».
Versículo 28: «Como não se
preocuparam por reconhecer Deus [o ponto inicial], entregou-os a um sentimento
depravado»...
– Demolido o alicerce da verdade,
arrasada a moral, entra em decomposição a própria pessoa e as relações sociais:
«estão cheios de toda a iniquidade, de malícia, de avareza, de maldade, cheios
de inveja, de homicídios, de contendas, de engano, de malignidade,
mexeriqueiros, maledicentes, inimigos de Deus, insolentes, soberbos,
arrogantes, inventores de maldades, desobedientes aos pais, insensatos,
desleais, sem coração, sem misericórdia».
Versículo 32: «Os quais,
conhecedores da justiça de Deus [o ponto de partida]... não somente praticam
tais coisas como aprovam os que as praticam».
Alguns convencem-se de que S.
Paulo exagerou. Afinal, negar que exista um Valor absoluto (negar que exista
Deus) não implicaria cair no fundo da depravação. Talvez rejeitar os princípios
fundamentais da justiça não leve a ser profundamente injusto. Se calhar, praticar
a injustiça não implica desonrar e destruir o próprio corpo.
A Carta aos Romanos aborda o
assunto do ponto de vista teórico, mas quando vemos a sociedade ocidental
assistimos a este desastre colossal. Primeiro, alguns deixaram de ter Deus no
coração, passaram a ter vergonha dEle, depois afastaram-se da rectidão ética,
deixaram crescer os egoísmos, relaxaram os costumes. Veio a condescendência com
o divórcio, a seguir a eliminação do compromisso no casamento. Quando demos por
ela, a sociedade entusiasmou-se com a contracepção, em detrimento da exigência
do amor responsável (o Papa Paulo VI foi lapidado por não acompanhar este
progresso). A contracepção passou ao aborto. Seguiu-se o elogio da
homossexualidade e, logo a seguir, a equiparação do casamento a uma relação
homossexual. Ontem, o Parlamento português aprovou na generalidade cinco
propostas para legalizar a morte de seres inocentes.
Com um veneno adicional, também
previsto na Carta aos Romanos: quase todos os que propuseram e aprovaram estes
projectos tiveram o cuidado de não destapar essa intenção nas recentes
eleições. Cumpriram o que faltava: «Desleais, sem coração, nem misericórdia».
José Maria C.S. André