sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

A nossa tendência para o egoísmo não morre

Não ponhas o teu "eu" na tua saúde, no teu nome, na tua carreira, na tua ocupação, em cada passo que dás... Que coisa tão maçadora! Parece que te esqueceste que "tu" não tens nada, é tudo d'Ele. Quando ao longo do dia te sentires, talvez sem razão, humilhado; quando pensares que o teu critério deveria prevalecer; quando notares que a cada instante borbota o teu "eu", o teu, o teu, o teu..., convence-te de que estás a matar o tempo e que estás a precisar que "matem" o teu egoísmo. (Forja, 1050)

Convém deixar o Senhor meter-se nas nossas vidas e entrar confiadamente sem encontrar obstáculos nem recantos obscuros. Nós, os homens, tendemos a defender-nos, a apegar-nos ao nosso egoísmo. Sempre tentamos ser reis, ainda que seja do reino da nossa miséria. Entendei através desta consideração por que motivo temos necessidade de recorrer a Jesus: para que Ele nos torne verdadeiramente livres e, dessa forma, possamos servir a Deus e a todos os homens. Só assim perceberemos a verdade daquelas palavras de S. Paulo: Agora, porém, livres do pecado e feitos servos de Deus, tendes por fruto a santificação e por fim a vida eterna. Porque o salário do pecado é a morte, ao passo que o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Nosso Senhor Jesus Cristo.

Estejamos precavidos, portanto, visto que a nossa tendência para o egoísmo não morre e a tentação pode insinuar-se de muitas maneiras. Deus exige que, ao obedecer, ponhamos em exercício a fé, porque a sua vontade não se manifesta com aparato ruidoso; às vezes o Senhor sugere o seu querer como que em voz baixa, lá no fundo da consciência; e é necessário escutar atentamente para distinguir essa voz e ser-Lhe fiel. (Cristo que passa, 17)

São Josemaría Escrivá

DIA DE NATAL*

Diálogo entre o Pai Natal e o Menino Jesus

Foi numa esquina qualquer que se encontraram o Pai Natal e o Menino Jesus. Enquanto aquele se preparava para trepar um prédio, com o seu saco às costas, este último, recém-nascido, descia à terra e oferecia-se inerme, num pobre estandarte, que cobria uma mísera janela.

- Quem és tu, Menino – disse o velho – e que fazes por aqui?! É a primeira vez que te vejo!

- Sou Jesus de Nazaré e ando há vinte séculos à procura de uma casa que me receba e, como há dois mil anos em Belém, não há quem me dê pousada.

- Pois não é de estranhar! Não vês que vens quase nu?! Porque não trazes roupas quentes, como as que eu tenho, para me proteger do frio do inverno?

- O calor com que me aqueço é o fogo do meu amor e o afecto dos que me amam.

- Eu trago muitos presentes, para os distribuir pelas casas das redondezas. E tu, que andas por aqui a fazer?

- Eu sou rico, mas fiz-me pobre, para os pobres enriquecer com a minha pobreza. Eu próprio sou o presente de quem me acolher. Não vim ensinar os homens a ter, mas a ser, porque quanto mais despojada é a vida humana, maior é aos olhos do Criador.

- E de onde vens e como vieste até aqui? Eu venho da Lapónia, lá para as bandas do pólo norte.

- Eu venho do céu, de onde é o meu Pai eterno, e vim ao mundo pelo sim de uma virgem, que me concebeu do Espírito Santo.

- Que coisa estranha! Nunca ouvi falar de ninguém que tenha nascido de uma virgem e assim tenha vindo ao mundo! E não tens nenhum animal que te transporte para tão longa viagem, como eu tenho estas renas?

- Um burrinho foi a minha companhia em Belém, e foi também o meu trono real, na entrada triunfal em Jerusalém.

- Um burro?! Não é grande coisa, para trono de um rei…

- O meu reino não é deste mundo e a sua entrada é tão estreita que os meus cortesãos, para lá entrarem, se têm que fazer pequeninos, porque destes é o meu reino.

- E que coisas ofereces? Que tesouros tens para dar? Que prometes?

- Trago a felicidade, mas escondida na cruz de cada dia; trago o céu, mas oculto no pó da terra; trago a alegria e a paz, mas no reverso das labutas do próprio dever; trago a eternidade, mas no tempo gasto ao serviço dos outros; trago o amor, mas como flor e fruto da entrega sacrificada.

- Pois eu trago as coisas que me pediram: jogos e brinquedos para os miúdos e, para os graúdos, saúde, prazer, riqueza e poder. Mas, por mais que lhes dê, nunca estão satisfeitos!

- A quem me dou, quer-me sempre mais na caridade que tem aos outros, porque é nos outros que eu quero que me amem a mim.

- Mais um enigma! De facto, somos muito diferentes, mas pelo menos numa coisa nos parecemos: ambos estamos sós, nesta noite de consoada!

- Eu nunca estou só, porque onde estou, está sempre o meu Pai e onde eu e o Pai estamos, está também o Amor que nós somos e estão aqueles que me amam.

- Bom, a conversa está demorada e ainda tenho muitas casas para assaltar, pela lareira, como manda a praxe.

- Eu estou à porta e bato e só entrarei na casa de quem liberrimamente me abrir a porta do seu coração e aí cearei e farei a minha morada.

- Pois sim, mas eu vou andando que já estou velho e cansado …

- Eu acabo de nascer e quem, mesmo sendo velho, renascer comigo, será como uma fonte de água viva a jorrar para a vida eterna.

O velho Pai Natal, resmungando, subiu ao telhado do luxuoso prédio, atirou-se pela chaminé abaixo e desapareceu.

Foi então que a janela onde estava o estandarte se abriu e uma pobre velhinha de rosto enrugado, como um antigo pergaminho, beijou o reverso da imagem do Deus Menino, que estremeceu de emoção. A seguir, encostou a vidraça, apagou a luz e, muito de mansinho, adormeceu. Depois, o Menino Jesus, sem a acordar, pegou nela ao colo e, fazendo do seu pendão um tapete mágico, levou-a consigo para o Céu.

P. Gonçalo Portocarrero de Almada (2010)

* Os primeiros cristãos chamavam dies natalis, ou seja, natal, ao dia da sua morte, porque entendiam que esse era o dia do seu nascimento para a verdadeira vida.