O principal argumento em defesa do aborto livre, da mudança de sexo e da eutanásia é o direito de fazer o que quero daquilo que é meu: o meu corpo. «O corpo é meu; eu sou eu livre; logo, tenho o direito de fazer dele o que quiser».
Ninguém pode negar que o meu corpo é meu, que minha vida é minha, que o feto é da mulher que o concebeu. Tal como ninguém negará que a minha casa é minha, o meu campo é meu, e que sou livre de mobilar a casa e cultivar no campo como me apetecer. Terei por isso o direito a modificar a casa à minha vontade ou destruí-la, cultivar o campo ou queimá-lo, conforme me apetecer? O Estado não tem direito a impedir-me de destruir em certos casos o que é «meu»? E quando digo «o meu pai», «a minha mãe», «o meu filho», estou dizendo que posso fazer deles o que quiser? Não são «meus»?
Que significa «ser meu»? O domínio absoluto de algum bem? De alguma pessoa? O que é meu não pode ser de outros também? Eu não pertenço também aos outros? Não sou da minha família, da minha terra, do meu país? Será cada um de nós um ser isolado, independente de todas as outras pessoas? Não sou responsável perante ninguém? Quando digo «isto é meu», quer dizer que fui eu que o criei do nada? Sem ajuda de ninguém?
A chamada «propriedade privada» só se justifica precisamente porque «tudo é de todos»: só porque «tudo é de todos» é que eu tenho direito a «possuir» - usar, administrar - uma parte: a minha parte. Mas nem essa parte é absolutamente minha; foi-me concedida para que eu possa desenvolver-me livremente, o que inclui usá-la para o que serve e respeitá-lo como bem comum.
Um exemplo corriqueiro: em cada família cada um tem a sua cama, os seus fatos, o seu espaço à mesa. Terá direito a partir a cama, a rasgar os fatos, a sentar-se no chão? Pelo facto de ser livre, tem direito a fazer de si o que quiser? Não é responsável perante os pais, a mulher, os filhos? Não deve nada a ninguém? Não o deve à sociedade em que subsiste? À família que o criou? Aos amigos que o ajudaram?
Sou só meu? Não sou ao mesmo tempo dos meus pais, dos meus irmãos, dos meus amigos, dos meus concidadãos, da Humanidade? E de Deus, meu Criador, meu Redentor e meu Pai?
Que resta, então, da minha liberdade? podia perguntar-se. Tudo! Não só podemos escolher o que quisermos (o que não significa obtê-lo sempre), mas nem sequer podemos deixar de ser livres. Todos somos «pro-choice» por natureza. É mesmo o que nos distingue dos animais, dos vegetais e dos minerais.
Em tudo somos «pro-choice». Não há no homem «instintos fatais»; só tendências, apetites, que podemos controlar – melhor ou pior - ou deixar que nos controlem, mais ou menos. Quando dizemos «eu cá faço o que me apetece» habitualmente significa que não faço o que quero, mas o que o apetite me pede. Serei mais livre por me deixar levar pelos apetites, ou mais escravo? O drogado, quantas vezes gostaria de ser senhor de si, mas já não o consegue! Só pode fazer «o que lhe apetece».
Os heterossexuais também são «pro-choice»; não por imposição fatal da natureza, mas porque o acham bem e o querem. Nesse sentido, é verdade que se trata de uma opção «cultural», ou seja, intelectual, racional. Por sinal, correcta. Qualquer decisão voluntária, livre, é um acto «cultural». Contudo, basta-nos um descuido para fazermos «o que nos apetece» e cair nos piores vícios. Sempre «pro-choice», evidentemente. Com uma liberdade cada vez mais fraca, também é certo. A caminho de a perdermos totalmente.
- Mas não será justo eliminar-me quando sou um peso para os outros? - Não. Cada um de nós é um peso para os outros desde a concepção: começamos logo por pesar na barriga da mãe, e depois no orçamento da casa e nas despesas do Estado. Sem esse «peso» não haveria Humanidade.
- Então sou obrigado a aguentar as dores de uma doença fatal ou insuportável? Além do direito aos cuidados paliativos, isso depende da capacidade de suportá-las, capacidade que depende, por sua vez, dos motivos que tenhamos para isso. Habitualmente, o simples amor à vida basta para aguentar quaisquer dores, mas são frequentíssimos os casos de resistência heroica ao sofrimento por amor aos filhos, à fé, à pátria, etc.
A desistência de viver não provém do sofrimento, mas da falta de sentido da vida. Se a vida não tem mais sentido do que gozar, qualquer incómodo seria suficiente para desistir dela, pois a vida é inseparável do sofrimento; da insatisfação, pelo menos. Nada nem ninguém nos satisfaz plenamente nesta vida.
O desejo de não dar mais despesas ou cuidados à família – que é lícito e até louvável – só serve para não prolongar desnecessariamente os tratamentos; não para fugir das incapacidades permanentes, visto que, como já dissemos, todos nós somos um «peso» para os outros desde a concepção. Incapazes de viver sem apoio alheio. E que espécie de família aceitaria esse «favor» de um ser querido? E quem poderia dar ao doente essa «licença», senão quem fosse seu dono? Que é só Deus.
- Mas assim sou um inútil! - Não és inútil para quem te ama; não és inútil para os médicos e enfermeiros que tratam de ti; não és inútil para os companheiros de sofrimento, que lutam contigo pela vida. És o primeiro trabalhador da Saúde: enquanto os profissionais trabalham muitas horas pela tua saúde, tu trabalhas 24 horas por dia (se fores bom doente e não impedires os tratamentos devidos).
Aliás, ninguém é inútil, porque traz ao mundo uma experiência e uma visão do mundo únicas, diferentes, irrepetíveis. Pode ser prejudicial por malvadez, mas inútil, nunca. Muito menos para o seu Criador: «Pode a mulher esquecer o filho do seu seio? Pois, ainda que ela o esquecesse, eu nunca me esquecerei de ti» (Is 49, 15).
Mons. Hugo de Azevedo na sua página no Facebook em 2017