segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Tintim co-adoptado?

Os clássicos são, por definição, aquelas obras de literatura a que sempre se regressa. Por isso, todos os verões, é certo e sabido que releio algum velho álbum do Tintim, recordando os bons velhos tempos da minha infância.
Hergé é, de facto, um autor de culto: os seus livros de aventuras são uma referência, não apenas da literatura juvenil, mas mundial. É verdade que os seus primeiros textos pecavam ainda por alguma ingenuidade, como o anticomunismo primário de Tintim no país dos sovietes, o colonialismo paternalista de Tintim no Congo, ou o simplismo sociológico de Tintim na América. Mas, depois de ultrapassada essa fase inicial, a obra de Georges Remi ganhou maturidade. Quer o protagonista, quer os seus amigos, apesar dos seus inevitáveis defeitos humanos, eram amáveis exemplos de virtude. Tintim é, por assim dizer, o herói que encarna os valores humanistas da Europa de meados do século XX. Mas, em pleno século XXI, estas aventuras e os seus princípios éticos ainda são válidos?

A questão tem alguma razão de ser. A evolução, ou involução, moral destas últimas décadas, obrigou a que Lucky Luke, uma personagem da banda desenhada criada por Morris, substituísse o cigarro, que sempre tinha ao canto da boca, por uma inócua palhinha. Tintim não fuma, mas o tabagismo está presente no capitão Haddock que, apesar de presidente da Liga dos Marinheiros Antialcoólicos, é um bêbado crónico. Mas, para alguns leitores actuais, essa não seria, nem de longe, a pior pecha da obra de Hergé que, a bem dizer, lhes parece ser machista, xenófoba, discriminatória das minorias, anti-ecológica e homofóbica.

De facto, Tintim e todos os protagonistas das suas aventuras são do sexo masculino. Nem sequer, que eu saiba, Milou é cadela! O machismo desta banda desenhada acentua-se também pelo carácter ridículo de algumas personagens femininas, de que é protótipo a estridente Bianca Castafiore.

De alguns anos a esta parte, as realizações cinematográficas norte-americanas integram geralmente algum actor de raça não-branca, ou algum portador de deficiência, mas não há nenhum representante das minorias étnicas, ou descapacitado, nos papéis principais das aventuras do xenófobo e eugénico repórter. Pior, a sua pele rosada e o seu penacho loiro encaixam perfeitamente no tipo ariano, de tão nefasta memória.

Outra ausência significativa é a ecológica: as aventuras contra o mal nunca contemplam a defesa do habitat natural, pois não há nenhuma estória do juvenil herói contra o buraco do ozono, a extinção das focas, ou o aquecimento global. Infelizmente, tanto a gripe das aves como a gripe A não sobreviveram às manchetes que preconizavam os seus efeitos pestíferos, dignos de uma catástrofe mundial e… de uma aventura sensacional.

Outra grave omissão é a que parece indiciar uma atitude homofóbica. Já não há telenovela em que não haja quem namore, ou viva, com uma pessoa do mesmo sexo, mas esta realidade social está ausente das aventuras de Tintim. Num universo predominantemente masculino, a questão até não seria de difícil solução: bastaria que os cómicos detectives Dupond e Dupont fossem apresentados como um felicíssimo casal.

Noutro âmbito, o das perversões sexuais, em que também são pródigas as modernas produções literárias e cinematográficas juvenis, Hergé também é omisso. Para este efeito, Néstor, o mordomo, deveria ser um viciado em práticas sadomasoquistas, à conta dos maléficos irmãos Pardal, os anteriores proprietários de Moulinsart.

Urge uma actualização moral das aventuras de Tintim, para que esta obra continue a ser uma referência da moderna literatura juvenil. Como? É fácil: basta que o herói principal seja filho do Capitão Haddock, o qual, na ausência de uma mãe, recorre, para o efeito, a uma anónima barriga de aluguer. O velho lobo do mar, que entretanto troca o vício da bebida pelas virtudes do crack, também se pode consorciar matrimonialmente com o seu amigo e companheiro, o Professor Tournesol que, por via desta união, poderia co-adoptar Tintim. Eis o que, com toda a propriedade, se poderia considerar, segundo os actuais padrões morais laicos, um happy end!

Perdoem-me a inocência de ter lido e apreciado, durante tantos anos, umas estórias tão politicamente incorrectas! Talvez os heróis de antanho parecessem machistas, xenófobos, discriminadores, anti-ecológicos e homofóbicos, mas eram tipos normais e simpáticos, que estimulavam a amizade, a lealdade e a prática das virtudes morais. Também a eles devo uma infância muito feliz.

P. Gonçalo Portocarrero de Almada in 'Observador' AQUI

O Evangelho do dia 24 de agosto de 2015

Filipe encontrou Natanael e disse-lhe: «Encontrámos Aquele de Quem escreveu Moisés na Lei, e os profetas: Jesus de Nazaré, filho de José». Natanael disse-lhe: «De Nazaré pode porventura sair coisa que seja boa?». Filipe disse-lhe: «Vem ver». Jesus viu Natanael, que vinha ter com Ele, e disse dele: «Eis um verdadeiro israelita em quem não há fingimento». Natanael disse-lhe: «Donde me conheces?». Jesus respondeu-lhe: «Antes que Filipe te chamasse, Eu te vi, quando estavas debaixo da figueira». Natanael respondeu: «Mestre, Tu és o Filho de Deus, Tu és o Rei de Israel». Jesus respondeu-lhe: «Porque te disse que te vi debaixo da figueira, acreditas?; verás coisas maiores que esta». E acrescentou: «Em verdade, em verdade vos digo, vereis o céu aberto e os anjos de Deus subir e descer sobre o Filho do Homem».

Jo 1, 45-51