quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Papa Francisco na Audiência geral (resumo em português)

Locutor: Nestes dias, pude visitar Cuba e os Estados Unidos da América, tendo a visita como ponto culminante o Encontro Mundial das Famílias, em Filadélfia. Com o povo cubano, partilhei a esperança de ver plenamente realizada a profecia de São João Paulo II: que Cuba se abra ao mundo e o mundo se abra a Cuba. Não mais fechamento, nem exploração da pobreza, mas liberdade na dignidade. Este é o caminho a seguir e que vai buscar força às raízes cristãs daquele povo que tanto sofreu. Símbolo desta unidade profunda da alma cubana é a Virgem da Caridade do Cobre, Padroeira da Nação e sua guia pelos caminhos da justiça, da paz, da liberdade e da reconciliação. De Cuba fui para os Estados Unidos, passagem emblemática duma ponte que, graças a Deus, se está reconstruindo. Deus sempre quer construir pontes: somos nós que construímos muros. O exemplo de São Junípero Serra encoraja-nos a seguir pela estrada de cada ser humano que conheceu o amor: não guardar o amor para si mesmo, mas reparti-lo pelos outros. Sobre esta base religiosa e moral, nasceram e cresceram os Estados Unidos da América, tendo alcançado, no século passado, o máximo desenvolvimento económico e tecnológico sem renegar as suas raízes religiosas. Agora estas mesmas raízes pedem que se recomece da família – como aliança fecunda e vitalícia entre um homem e uma mulher –, para se rever e ajustar o modelo de desenvolvimento, de modo que este possa beneficiar a família humana inteira.

Santo Padre:
Carissimi pellegrini di lingua portoghese, benvenuti! Di cuore vi saluto tutti, in particolare i fedeli brasiliani venuti da São Paulo, Rio de Janeiro, Itú e Campo grande, ricordandovi che la risposta alla grave sfida della divisione e massificazione nel mondo attuale è la famiglia. Su di voi e sulle vostre famiglie, scenda la benedizione di Dio!

Locutor: Queridos peregrinos de língua portuguesa, sede bem-vindos! De coração vos saúdo a todos, em particular os fiéis brasileiros vindos de São Paulo, Rio de Janeiro, Itú e Campo Grande, lembrando-vos que a reposta ao grave desafio da divisão e massificação no mundo actual é a família. Sobre vós e as vossas famílias, desça a bênção de Deus!

«Hei-de seguir-te para onde quer que fores»: um grande missionário perante os perigos

São Francisco Xavier (1506-1552), missionário jesuíta 
Carta de 22/10/1552


Numerosos decretos proíbem a entrada na China. [...] Mas, para lá dos perigos de prisão e de maus tratos, existem outros muito maiores, que passam despercebidos aos habitantes desse país. [...] Em primeiro lugar, a perda da esperança e da confiança em Deus, quando é por Seu amor e ao Seu serviço que damos a conhecer a Sua Lei e Jesus Cristo, Seu Filho, nosso Redentor e Senhor, como Ele bem sabe. Uma vez que foi pela Sua santa misericórdia que nos comunicou estes desejos, perder agora confiança na Sua misericórdia e no Seu poder perante os perigos que poderemos correr ao Seu serviço é um perigo incomparavelmente superior aos males que todos os inimigos de Deus nos podem causar. Se isso for importante para o Seu serviço, Deus proteger-nos-á de todos os perigos desta vida. [...] Por isso temos a segurança das palavras do Senhor: «Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo aborrece a sua vida conservá-la-á para a vida eterna» (Jo 12,25). E também destas, semelhantes às primeiras: «Quem olha para trás, depois de deitar a mão ao arado, não está apto para o Reino de Deus.»

Quanto a nós, tendo em consideração estes perigos para a alma, que são muito superiores aos do corpo, pensamos que é mais seguro e evidente enfrentar os perigos corporais. [...] Seja de que maneira for, estamos determinados a ir à China.

O Evangelho do dia 30 de setembro de 2015

Indo eles pelo caminho, veio um homem que Lhe disse: «Seguir-Te-ei para onde quer que fores». Jesus respondeu-lhe: «As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, porém, o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça». A um outro disse: «Segue-Me». Mas ele disse: «Senhor, permite-me que eu vá primeiro sepultar meu pai». Mas Jesus replicou: «Deixa que os mortos sepultem os seus mortos; tu vai anunciar o reino de Deus». Um outro disse-Lhe: «Senhor, seguir-Te-ei, mas permite que vá primeiro dizer adeus aos de minha casa». Jesus respondeu-lhe: «Ninguém que, depois de ter metido a mão no arado olha para trás, é apto para o reino de Deus».

Lc 9, 57-62

terça-feira, 29 de setembro de 2015

‘Caminho’ publicado nesta data em 1939

Hoje, 29 de Setembro de 2014 celebram-se 75 anos da primeira edição de ‘Caminho’, primeiro livro de São Josemaría Escrivá, obra fundamental para entender todo o seu carisma e o Opus Dei, diríamos mesmo obra prima da contemporaneidade espiritual (vídeo em espanhol)



Caminho, fruto do trabalho sacerdotal que São Josemaría Escrivá tinha iniciado em 1925, aparece pela primeira vez em 1934 (em Cuenca, Espanha) com o título de "Consideraciones Espirituales". Na edição seguinte -realizada em Valência em 1939 -, o livro, notavelmente ampliado, recebe já o seu título definitivo. Desde então difundiu-se com um ritmo contínuo e progressivo. Actualmente, publicaram-se de Caminho cerca de 4.500.000 exemplares em 43 idiomas. Caminho tem um estilo directo, de diálogo sereno, em que o leitor se encontra frente às exigências divinas num ambiente de confiança e amizade. Quando se publicou em Itália, L'Osservatore Romano comentou: "Mons. Escrivá de Balaguer escreveu mais que uma obra mestra, escreveu inspirando-se directamente no coração, e ao coração chegam directamente, um a um, os parágrafos que formam Caminho ."

O Evangelho do dia 29 de setembro de 2015

Jesus viu Natanael, que vinha ter com Ele, e disse dele: «Eis um verdadeiro israelita em quem não há fingimento». Natanael disse-lhe: «Donde me conheces?». Jesus respondeu-lhe: «Antes que Filipe te chamasse, Eu te vi, quando estavas debaixo da figueira». Natanael respondeu: «Mestre, Tu és o Filho de Deus, Tu és o Rei de Israel». Jesus respondeu-lhe: «Porque te disse que te vi debaixo da figueira, acreditas?; verás coisas maiores que esta». E acrescentou: «Em verdade, em verdade vos digo, vereis o céu aberto e os anjos de Deus subir e descer sobre o Filho do Homem».

Jo 1, 47-51

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

«Quem não é contra vós é por vós»

Concílio Vaticano II
Constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo, « Gaudium et spes », § 92

Em virtude da sua missão de iluminar o mundo inteiro com a mensagem de Cristo e de reunir sob um só Espírito todos os homens, de qualquer nação, raça ou cultura, a Igreja constitui um sinal daquela fraternidade que torna possível e fortalece o diálogo sincero.

Isto exige, em primeiro lugar, que, reconhecendo toda a legítima diversidade, promovamos na própria Igreja a mútua estima, respeito e concórdia, em ordem a estabelecer entre todos os que formam o Povo de Deus, pastores ou fiéis, um diálogo cada vez mais fecundo. Porque o que une entre si os fiéis é bem mais forte do que o que os divide: haja unidade no necessário, liberdade no que é duvidoso, e em tudo caridade.

Abraçamos também em espírito os irmãos que ainda não vivem em plena comunhão connosco, e as suas comunidades, com os quais estamos unidos na confissão do Pai, Filho e Espírito Santo [...]. Voltamos também o nosso pensamento para todos os que reconhecem Deus e guardam nas suas tradições preciosos elementos religiosos e humanos, desejando que um diálogo franco nos leve a todos a receber com fidelidade os impulsos do Espírito e a segui-los com entusiasmo.

Pela nossa parte, o desejo de um tal diálogo, guiado apenas pelo amor pela verdade e com a necessária prudência, não exclui ninguém; nem aqueles que cultivam os altos valores do espírito humano, sem ainda conhecerem o seu Autor; nem aqueles que se opõem à Igreja, e de várias maneiras a perseguem. Como Deus Pai é o princípio e o fim de todos eles, todos somos chamados a ser irmãos. Por isso, chamados pela mesma vocação humana e divina, podemos e devemos cooperar pacificamente, sem violência nem engano, na edificação do mundo na verdadeira paz.

O Evangelho do dia 28 de setembro de 2015

Começaram a discutir entre si sobre qual deles era o maior. Jesus, vendo os pensamentos do seu coração, tomou pela mão uma criança, pô-la junto de Si, e disse-lhes: «Aquele que receber esta criança em Meu nome, a Mim recebe; e quem Me receber, recebe Aquele que Me enviou. Porque quem de entre vós é o menor, esse é o maior». João, tomando a palavra, disse: «Mestre, nós vimos um que expulsava os demónios em Teu nome e lho proibimos, porque não anda connosco». Jesus respondeu-lhe: «Não lho proibais, porque quem não é contra vós é por vós».

Lc 9, 46-50

domingo, 27 de setembro de 2015

Santa Missa conclusiva do Encontro Mundial das Famílias em Filadélfia, homilia completa do Papa Francisco

Hoje, a Palavra de Deus surpreende-nos com uma linguagem alegórica forte, que nos faz pensar; imagens vigorosas, que questionam as nossas reflexões. Uma linguagem alegórica que nos interpela, mas que anima o nosso entusiasmo.

Na primeira Leitura, Josué diz a Moisés que dois membros do povo estão a profetizar, anunciando a palavra de Deus sem qualquer mandato. No Evangelho, João diz a Jesus que os discípulos impediram uma pessoa de expulsar os espíritos malignos em nome d’Ele. E aqui aparece a surpresa: Moisés e Jesus censuram estes colaboradores por serem de mente tão fechada. Oxalá fossem todos profetas da Palavra de Deus! Oxalá cada um fosse capaz de fazer milagres em nome do Senhor!

Por sua vez, Jesus encontra hostilidade nas pessoas que não aceitaram aquilo que fazia e dizia. Para elas, a abertura de Jesus à fé honesta e sincera de muitas pessoas, que não faziam parte do povo eleito de Deus, parecia intolerável. Entretanto os discípulos estavam a agir em boa-fé; mas a tentação de serem escandalizados pela liberdade de Deus, que faz chover tanto sobre os justos como sobre os injustos (cf. Mt 5, 45), ultrapassando a burocracia, o oficial e os círculos restritos, ameaça a autenticidade da fé e, por isso, deve ser vigorosamente rejeitada.

Quando nos damos conta disto, podemos entender por que motivo as palavras de Jesus sobre o escândalo são tão duras. Para Jesus, o escândalo intolerável consiste em tudo aquilo que destrói e corrompe a nossa confiança no modo de agir do Espírito.

Deus, nosso Pai, não Se deixa vencer em generosidade, e semeia. Semeia a sua presença no nosso mundo, porque «é nisto que está o amor: não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou» primeiro (1 Jo 4, 10). Aquele amor dá-nos uma certeza profunda: somos procurados por Ele, Ele está à nossa espera. É esta confiança que leva o discípulo a estimular, acompanhar e fazer crescer todas as boas iniciativas que existem ao seu redor. Deus quer que todos os seus filhos tomem parte na festa do Evangelho. Não ponhais obstáculo ao que é bom – diz Jesus –, antes pelo contrário, ajudai-o a crescer. Pôr em dúvida a obra do Espírito, dar a impressão de que a mesma não tem nada a ver com aqueles que não são «do nosso grupo», que não são «como nós», é uma tentação perigosa. Não só bloqueia a conversão à fé, mas constitui uma perversão da fé.
A fé abre a «janela» à presença operante do Espírito e demonstra-nos que a santidade, tal como a felicidade, está sempre ligada aos pequenos gestos. «Seja quem for que vos der a beber um copo de água por serdes de Cristo, (...) não perderá a sua recompensa», diz Jesus (Mc 9, 41). São gestos mínimos, que uma pessoa aprende em casa; gestos de família que se perdem no anonimato da vida diária, mas que fazem cada dia diferente do outro. São gestos de mãe, de avó, de pai, de avô, de filho. São gestos de ternura, de afecto, de compaixão. Gestos como o prato quente de quem espera para jantar, como o café da manhã de quem sabe acompanhar o levantar na alvorada. São gestos familiares. É a bênção antes de dormir, e o abraço ao regressar duma jornada de trabalho. O amor exprime-se em pequenas coisas, na atenção aos detalhes de cada dia que fazem com que a vida tenha sempre sabor de casa. A fé cresce, quando é vivida e plasmada pelo amor. Por isso, as nossas famílias, as nossas casas são autênticas igrejas domésticas: são o lugar ideal onde a fé se torna vida e a vida se torna fé.

Jesus convida-nos a não obstaculizar estes pequenos gestos miraculosos; antes, quer que os provoquemos, que os façamos crescer, que acompanhemos a vida como ela se nos apresenta, ajudando a suscitar todos os pequenos gestos de amor, sinais da sua presença viva e operante no nosso mundo.

Este comportamento a que somos convidados leva-nos a perguntar: Como estamos a trabalhar para viver esta lógica nas nossas famílias e nas nossas sociedades? Que tipo de mundo queremos deixar aos nossos filhos (cf. Laudato si’, 160)? Não podemos responder, sozinhos, a estas perguntas. É o Espírito que nos chama e desafia a responder a elas com a grande família humana. A nossa casa comum não pode mais tolerar divisões estéreis. O desafio urgente de proteger a nossa casa inclui o esforço de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar (cf. ibid., 13). Que os nossos filhos encontrem em nós pontos de referência para a comunhão! Que os nossos filhos encontrem em nós pessoas capazes de se associarem com outras para fazer florir todo o bem que o Pai semeou.

Sem meias palavras mas com afecto, Jesus diz-nos: «Se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedem?» (Lc 11, 13). Quanta sabedoria há nestas palavras! De facto nós, seres humanos, quanto a bondade e pureza de coração não temos muito de que nos vangloriarmos; mas Jesus sabe que, relativamente aos filhos, somos capazes de uma generosidade sem limites. Por isso nos encoraja: se tivermos fé, o Pai dar-nos-á o seu Espírito.

Nós cristãos, discípulos do Senhor, pedimos às famílias do mundo que nos ajudem. Somos tantos a participar nesta celebração e isto, em si mesmo, já é algo de profético, uma espécie de milagre no mundo de hoje. Quem dera que fôssemos todos profetas! Quem dera que cada um de nós se abrisse aos milagres do amor a bem de todas as famílias do mundo, para assim podermos superar o escândalo dum amor mesquinho e desconfiado, fechado em si mesmo, sem paciência com os outros!

Como seria bom se por todo o lado, mesmo para além das nossas fronteiras, pudéssemos encorajar e apreciar esta profecia e este milagre! Renovemos a nossa fé na palavra do Senhor, que convida as nossas famílias para esta abertura; que convida todos a participarem na profecia da aliança entre um homem e uma mulher, que gera vida e revela Deus.

Toda a pessoa que desejar formar, neste mundo, uma família que ensine os filhos a alegrar-se com cada ação que se proponha vencer o mal – uma família que mostre que o Espírito está vivo e operante –, encontrará a nossa gratidão e a nossa estima, independentemente do povo, região ou religião a que pertença.

Que Deus nos conceda a todos, como discípulos do Senhor, a graça de ser dignos desta pureza de coração que não se escandaliza do Evangelho.

Celebração para as famílias e vigília de oração em Filadélfia, discurso do Santo Padre


Queridos irmãos e irmãs,
Queridas famílias!

Quero agradecer, antes de mais nada, às famílias que tiveram a coragem de partilhar connosco a sua vida. Obrigado pelo vosso testemunho! É sempre um presente poder ouvir as famílias partilharem as suas experiências de vida; toca o coração. Sentimos que nos falam de coisas verdadeiramente pessoais e únicas, mas que de certa forma nos dizem respeito a todos. Ouvindo as suas experiências, podemos sentir-nos envolvidos, interpelados como esposos, como pais, como filhos, irmãos, avós. Enquanto as ouvia, eu pensava como é importante partilhar a vida das nossas casas e ajudar-nos a crescer nesta tarefa linda e desafiadora que é «ser família».

Encontrar-me convosco faz-me pensar num dos mistérios mais belos do cristianismo. Deus não quis vir ao mundo senão através duma família. Deus não quis aproximar-se da humanidade senão através duma casa. Para Si mesmo, Deus não quis outro nome senão o de «Emanuel» (cf. Mt 1, 23): é o Deus connosco. E este foi, desde o princípio, o seu sonho, o seu propósito, a sua luta incansável para nos dizer: «Eu sou o Deus convosco, o Deus para vós». É o Deus que, desde os primórdios da criação, afirmou: «Não é conveniente que o homem esteja só» (Gn 2, 18). E nós podemos continuar dizendo: não é conveniente que a mulher esteja só, não é conveniente que a criança, o idoso, o jovem estejam sós; não é conveniente. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe, unir-se-á à sua mulher e os dois serão uma só carne (cf. Gn 2, 24). Os dois serão uma só morada, uma família.

E assim desde tempos imemoriais, no mais fundo do nosso coração, ouvimos estas palavras que tocam fortemente o nosso íntimo: não é conveniente que tu estejas só. A família é o grande dom, o grande presente deste «Deus connosco» que não quis abandonar-nos à solidão de viver sem ninguém, sem desafios, sem morada.

Deus não Se limita a sonhar, mas procura fazer tudo «connosco». O sonho de Deus continua a realizar-se nos sonhos de muitos casais que têm a coragem de fazer, da sua vida, uma família.

Por isso, a família é o símbolo vivo do projecto de amor que um dia o Pai sonhou. Querer formar uma família é ter a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem de sonhar com Ele, a coragem de construir com Ele, a coragem de unir-se a Ele nesta história, de construir um mundo onde ninguém se sinta só, onde ninguém se sinta supérfluo ou sem lugar.

Nós, cristãos, admiramos a beleza de cada momento familiar, vendo nele como que o lugar onde, gradualmente, aprendemos o significado e o valor das relações humanas. Aprendemos que amar alguém não é apenas um sentimento forte, mas uma decisão, um discernimento, uma promessa (cf. E. FROMM, A arte de amar). Aprendemos a gastar-nos por alguém, e aprendemos que isto vale a pena.

Jesus não era um «solteirão», muito pelo contrário. Desposou a Igreja, fez dela o seu povo. Gastou-Se por aqueles que ama, entregando-Se completamente para que a sua esposa, a Igreja, pudesse sempre experimentar que Ele é o Deus connosco, com o seu povo, com a sua família. Não podemos compreender Cristo sem a sua Igreja, tal como não podemos compreender a Igreja sem o seu esposo, Cristo Jesus, que Se entregou por amor e mostrou-nos que vale a pena fazê-lo.

Gastar-se por amor não é, em si, uma coisa fácil. Como se verificou com o Mestre, há momentos em que este «gastar-se» passa por situações de cruz. Momentos, em que parece que tudo se torna difícil. Penso em tantos pais, tantas famílias a quem falta trabalho, ou têm um trabalho sem direitos que se torna um verdadeiro calvário. Quanto sacrifício para se conseguir o pão de cada dia! Obviamente estes pais, quando chegam a casa, não podem dar o melhor de si aos seus filhos pelo cansaço que trazem.

Penso em tantas famílias que não têm um tecto sob o qual se abrigar, ou vivem em postos sobrelotados que não possuem o mínimo de condições para poder estabelecer laços de intimidade, de segurança, de protecção contra tantos tipos de adversidade.

Penso em tantas famílias que não têm acesso aos serviços básicos de saúde. Famílias, que para os problemas de saúde, especialmente das crianças ou dos idosos, dependem dum sistema que não os trata com seriedade, transcurando a angústia e submetendo estas famílias a grandes sacrifícios para poderem responder aos seus problemas sanitários.

Não podemos imaginar uma sociedade sadia que não dê espaço concreto à vida da família. Não podemos pensar um futuro para uma sociedade que não encontre uma legislação capaz de defender e garantir as condições mínimas e necessárias para que as famílias, especialmente aquelas que estão a começar, possam desenvolver-se. Quantos problemas se resolverão, se as nossas sociedades protegerem e garantirem que o espaço familiar, especialmente o dos jovens recém-casados, encontrará a possibilidade de ter um trabalho digno, uma habitação segura, um serviço de saúde que acompanhe o crescimento da família em todas as fases da vida.

O sonho de Deus continua irrevogável, continua intacto e convida-nos a trabalhar, a comprometer-nos a favor duma sociedade pro família. Uma sociedade, onde «o pão, fruto da terra e do trabalho do homem», continue a ser partilhado em cada casa alimentando a esperança dos seus filhos.
Ajudemo-nos para que este «gastar-se por amor» continue a ser possível. Nos momentos de dificuldade, ajudemo-nos uns aos outros para aliviar o peso. Façamos de modo que uns sejam apoio dos outros, as famílias apoio doutras famílias.

Não há famílias perfeitas, mas isto não nos deve desencorajar. Pelo contrário, o amor aprende-se, o amor vive-se, o amor cresce «moldando-se» segundo as circunstâncias da vida que cada família concreta atravessa. O amor nasce e desenvolve-se sempre entre luzes e sombras. O amor é possível em homens e mulheres concretos que procuram fazer dos conflitos, não a última palavra, mas uma oportunidade. Oportunidade para pedirmos ajuda, oportunidade para nos questionarmos em que devemos melhorar, oportunidade para descobrirmos o Deus-connosco que nunca nos abandona. Este é um grande legado que podemos dar aos nossos filhos, uma óptima lição: é verdade que cometemos erros; é verdade que temos problemas; mas sabemos que estas coisas não são a realidade definitiva. Sabemos que os erros, os problemas, os conflitos são uma oportunidade para nos aproximarmos dos outros e de Deus.

Nesta noite, reunimo-nos para rezar, para o fazer em família, para fazer das nossas famílias o rosto sorridente da Igreja. Para nos encontrarmos com Deus que não quis outra forma para vir ao mundo senão por meio duma família. Para nos encontrarmos com o Deus- connosco, o Deus que está sempre no meio de nós.

Bom Domingo do Senhor!

Façamos como o Senhor nos ensina no Evangelho de hoje (Mc 9,38-43.45.47-48) e não critiquemos aqueles que embora não sendo católicos e apenas cristãos O proclamam com palavras justas e praticam a caridade em seu nome.

Senhor Jesus transforma-nos em protagonistas do propósito da unidade de todos os cristãos, começando desde logo da de todos os católicos separados por antagonismos de quem parece não haver lido o Teu Evangelho.

«Seja quem for que vos der a beber um copo de água por serdes de...»

Santo Agostinho (354-430), Bispo de Hipona (África do Norte) e Doutor da Igreja
3º Sermão sobre o Salmo 36

Dá os bens deste mundo e receberás os bens eternos. Dá a terra e receberás o céu. Mas a quem os dar? [...] Escuta o que a Escritura te diz sobre como emprestar ao próprio Senhor: «Quem dá ao pobre empresta ao Senhor» (Pr 19,17). Deus não precisa de ti, seguramente: mas outro precisará. O que deres a um, outro o receberá. Porque o pobre nada tem para te dar; bem o queria, mas nada encontra para dar; nele há apenas essa vigilante vontade de rezar por ti. Mas quando um pobre reza por ti, é como se dissesse a Deus: «Senhor, recebi um empréstimo, sê a minha caução». E então, se o pobre com quem lidas está insolvente, tem um bom fiador, pois Deus diz-te: «Dá em segurança, sou Eu quem responde por ele [...], sou Eu quem dará, sou Eu quem recebe, é a Mim que dás.»

Acreditas que Deus te diz: «Sou Eu quem recebe, é a Mim que dás?» Sim, seguramente, pois Cristo é Deus, e nisto não pode haver dúvida. Porque Ele disse: «Tive fome e destes-Me de comer». E como lhe perguntamos: «Senhor, quando foi que te vimos com fome?», Ele quer mostrar que é de facto o fiador dos pobres, que responde por todos os seus membros [...]. Ele declara-nos: «Sempre que fizestes isto a um destes Meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 35ss).

sábado, 26 de setembro de 2015

Discurso do Papa ao Encontro pela Liberdade no Independence Mall em Filadélfia

Queridos amigos!

Um dos momentos salientes da minha visita tem lugar aqui, diante do Independence Mall, local do nascimento dos Estados Unidos da América. Neste lugar, foram proclamadas pela primeira vez as liberdades que definem este País. A Declaração de Independência afirmou que todos os homens e todas as mulheres são criados iguais, que são dotados pelo seu Criador de alguns direitos inalienáveis e que os governos existem para proteger e defender tais direitos. Estas vibrantes palavras continuam a inspirar-nos hoje, tal como inspiraram outros povos em todo o mundo, no combate pela liberdade de viver de acordo com a sua dignidade.

Mas a história mostra também que esta verdade, como aliás qualquer verdade, deve ser constantemente reafirmada, assumida e defendida. A história desta nação é também a história dum esforço constante, até aos nossos dias, para encarnar estes altos princípios na vida social e política. Recordamos as grandes lutas que levaram à abolição da escravatura, à extensão do direito de voto, ao crescimento do movimento operário, e ao esforço progressivo por eliminar todas as formas de racismo e preconceito contra as sucessivas ondas de novos americanos. Isto demonstra que um País, quando está determinado a permanecer fiel aos seus princípios fundadores que se baseiam no respeito pela dignidade humana, torna-se mais forte e renova-se.

Todos beneficiamos quando se faz memória do nosso passado. Um povo que recorda não repete os erros do passado; pelo contrário, olha confiante para os desafios do presente e do futuro. A memória salva a alma dum povo de tudo aquilo ou de todos aqueles que poderiam tentar dominá-lo ou utilizá-lo para os seus interesses. Quando o exercício efetivo dos respectivos direitos é garantido aos indivíduos e às comunidades, estes não apenas se sentem livres para realizar as suas potencialidades mas contribuem para o bem-estar e enriquecimento da sociedade.

Neste lugar, que é um símbolo do espírito americano, quereria reflectir convosco sobre o direito à liberdade religiosa. É um direito fundamental que plasma o modo como interagimos social e pessoalmente com nossos vizinhos, cujos pontos de vista religiosos são diferentes dos nossos.
A liberdade religiosa implica certamente o direito de adorar a Deus, individual e comunitariamente, como a nossa consciência dita. Mas, por outro lado, a liberdade religiosa transcende, por sua natureza, os lugares de culto, bem como a esfera dos indivíduos e das famílias.

As nossas diferentes tradições religiosas servem a sociedade, primariamente através da mensagem que proclamam. Convidam os indivíduos e as comunidades a adorar a Deus, fonte de cada vida, da liberdade e da bondade. Lembram-nos a dimensão transcendente da existência humana e a nossa liberdade irredutível contra qualquer pretensão de poder absoluto. Basta lançar um olhar à história, especialmente à do século passado, para ver as atrocidades perpetradas pelos sistemas que pretenderam construir este ou aquele «paraíso terrestre» dominando os povos, subjugando-os com princípios aparentemente indiscutíveis e negando-lhes qualquer tipo de direito. As nossas ricas tradições religiosas procuram oferecer significado e orientação, «possuem uma força motivadora que abre sempre novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece a mente e a sensibilidade» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 256). Chamam à conversão, à reconciliação, ao compromisso em prol do futuro da sociedade, ao sacrifício de si mesmo no serviço do bem comum, e à compaixão por aqueles passam necessidade. No coração da sua missão espiritual, encontra-se a proclamação da verdade e da dignidade da pessoa humana, bem como dos direitos humanos.

As nossas tradições religiosas lembram-nos que, enquanto seres humanos, somos chamados a reconhecer o Outro que revela a nossa identidade relacional contra qualquer tentativa de instaurar «uma uniformidade que o egoísmo do forte, o conformismo do fraco, ou ainda a ideologia do utopista poderia procurar impor-nos» (M. de Certeau).

Num mundo onde as diferentes formas de moderna tirania procuram suprimir a liberdade religiosa, ou reduzi-la a uma subcultura sem direito de expressão na esfera pública, ou ainda usar a religião como pretexto para o ódio e a brutalidade, torna-se forçoso que os seguidores das diferentes religiões unam a sua voz para invocar a paz, a tolerância, o respeito pela dignidade e os direitos dos outros.

Vivemos num mundo sujeito «à globalização do paradigma tecnocrático» (Enc. Laudato si’, 106), que visa conscientemente uma uniformidade unidimensional e procura eliminar todas as diferenças e as tradições numa busca superficial de unidade. As religiões têm, portanto, o direito e o dever de fazer compreender que é possível construir uma sociedade onde «um são pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que pensam diferente e os valores como tais» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 255), é um «precioso aliado no compromisso pela defesa da dignidade humana, (...) um caminho de paz para o nosso mundo ferido» (ibid., 257).

Os Quakers, que fundaram Filadélfia, viviam inspirados por um profundo sentido evangélico da dignidade de cada pessoa e pelo ideal duma comunidade unida pelo amor fraterno. Tal convicção levou-os a fundar uma colónia que haveria de ser um paraíso de liberdade religiosa e tolerância. Este significado de compromisso fraterno em prol da dignidade de todos, especialmente dos mais fracos e vulneráveis, tornou-se parte essencial do espírito americano. Durante a sua visita aos Estados Unidos em 1987, São João Paulo II prestou-vos um comovente tributo, lembrando a todos os americanos que «a prova decisiva da vossa grandeza é o modo como tratais cada ser humano, mas de maneira especial os mais fracos e os mais indefesos» (Discurso na cerimónia de despedida no Aeroporto de Detroit, 19 de Setembro de 1987, 3).

Aproveito agora a ocasião para agradecer a todos aqueles que procuraram, qualquer que seja a sua religião, servir o Deus da paz construindo cidades animadas pelo amor fraterno, cuidando do próximo em necessidade, defendendo a dignidade do dom divino da vida em todas as sua fases, defendendo a causa dos pobres e dos imigrantes. Com muita frequência, aqueles que precisam da nossa ajuda são incapazes de se fazer ouvir. Vós sois a sua voz, e muitos dentre vós permitiram lealmente que o seu grito fosse ouvido. Com este testemunho, que muitas vezes encontra forte resistência, recordais à democracia americana os ideais para que foi fundada, e que a sociedade debilita-se sempre e em toda a parte onde prevalece a injustiça.

No nosso meio, temos hoje membros da grande população hispânica da América, bem como representantes de imigrantes recentes nos Estados Unidos. A todos saúdo com particular afecto! Muitos de vós são imigrantes neste país, pagando pessoalmente um alto preço, mas com a esperança de construir uma nova vida. Não desanimeis com os desafios e as dificuldades que tendes de enfrentar, sejam eles quais forem. Peço para não vos esquecerdes que, tal como aqueles que vieram antes de vós, trazeis muitos talentos à vossa nova nação. Não vos envergonheis das vossas tradições. Não esqueçais as lições que aprendestes dos vossos antepassados e que podem enriquecer a vida deste país americano. Repito: não vos envergonheis daquilo que faz parte de vós, o sangue da vossa vida. Também vós sois chamados a ser cidadãos responsáveis e a contribuir frutuosamente para a vida das comunidades onde viveis. Penso de modo particular na fé fervorosa de muitos de vós, no sentido profundo da vida familiar e em todos os outros valores que recebeste sem herança. Trazendo as vossas contribuições, não só encontrareis o vosso lugar aqui, mas ajudareis a sociedade a renovar-se a partir de dentro.

Queridos amigos, agradeço o vosso caloroso acolhimento e o facto de vos terdes reunido hoje comigo. Possam esta nação e cada um de vós sentir-se renovados na gratidão pelas muitas bênçãos e liberdades de que gozais. E possais defender estes direitos, especialmente a vossa liberdade religiosa, porque esta foi-vos dada pelo próprio Deus. Ele vos abençoe a todos. Peço-vos, por favor, que não vos esqueçais de rezar por mim.

Homilia integral do Papa na Santa Missa com os bispos, clero e religiosos e religiosas em Filadélfia

Celebração na Catedral de S. Pedro e S. Paulo de Filadélfia
Nesta manhã, aprendi algo mais da história desta bela catedral: a história que está por detrás das suas paredes altas e dos seus vitrais. Contudo prefiro olhar a história da Igreja, nesta cidade e neste Estado, como uma história não de construção de muros, mas do seu derrube. Ela fala-nos de gerações e gerações de católicos comprometidos, saindo para as periferias a fim de construir comunidades de culto, de educação, de caridade e de serviço à sociedade inteira.

Uma tal história é visível nos muitos santuários espalhados por esta cidade, nas suas inúmeras paróquias, cujas agulhas e campanários falam da presença de Deus no meio das nossas comunidades. Vemo-la também nos esforços de todos aqueles sacerdotes, religiosos e leigos que, com dedicação, ao longo de dois séculos, trabalharam pelas necessidades espirituais dos pobres, dos imigrantes, dos doentes e dos encarcerados. Vemo-la também nas inúmeras escolas onde consagrados e consagradas ensinaram as crianças a ler e a escrever, a amar a Deus e ao próximo, e a contribuir como bons cidadãos para a vida da sociedade americana. Tudo isto é a herança verdadeira que recebestes e que sois chamados a enriquecer e transmitir.

Muitos de vós conhecem a história de Santa Catarina Drexel, uma das grandes Santas saídas desta Igreja local. Quando ela falou ao Papa Leão XIII da necessidade das missões, o Papa – era um Papa muito sábio! – perguntou-lhe de maneira incisiva: «E tu, que farás?» Aquelas palavras mudaram a vida de Santa Catarina, porque recordaram-lhe que afinal cada cristão recebeu, em virtude do Batismo, uma missão. Cada um de nós deve responder, da melhor forma possível, à chamada do Senhor para construir o seu Corpo, que é a Igreja.

«E tu, que farás?» A partir destas palavras, gostaria de me deter sobre dois aspectos, no contexto da nossa missão especial de transmitir a alegria do Evangelho e edificar a Igreja como sacerdotes, diáconos ou membros de institutos de vida consagrada.

Em primeiro lugar, aquelas palavras – «E tu, que farás?» – foram dirigidas a uma pessoa jovem, uma jovem mulher com ideais elevados, e mudaram a sua vida. Impeliram-na a pensar no trabalho imenso que havia para realizar e a dar-se conta de que também ela era chamada a fazer a sua parte. Quantos jovens, nas nossas paróquias e escolas, têm os mesmos ideais elevados, generosidade de espírito e amor a Cristo e à Igreja! Somos nós capazes de os pôr à prova? Somos capazes de os guiar e ajudar a fazer a sua parte? A encontrar caminhos para poderem partilhar o seu entusiasmo e os seus dons com as nossas comunidades, sobretudo nas obras de misericórdia e de compromisso a favor dos outros? Partilhamos a própria alegria e entusiasmo que temos em servir o Senhor?

Um dos grandes desafios que a Igreja tem pela frente, nesta geração, é promover, em todos os fiéis, o sentido de responsabilidade pessoal pela missão da Igreja e torná-los capazes de cumprirem tal responsabilidade como discípulos missionários, serem fermento do Evangelho no nosso mundo. Isto exige criatividade para se adaptar às situações em mudança, para levar avante a herança do passado, não primariamente mantendo as estruturas e as instituições, que também foram úteis, mas acima de tudo estando disponíveis para as possibilidades que o Espírito abre diante de nós e comunicando a alegria do Evangelho, todos os dias e em todas as estações da vida.

«E tu, que farás?» É significativo que as palavras do Papa já idoso tivessem sido dirigidas a uma mulher leiga. Sabemos que o futuro da Igreja, numa sociedade em rápida mudança, exigirá – e já agora o exige – um compromisso cada vez mais ativo por parte dos leigos. A Igreja nos Estados Unidos sempre dedicou um enorme esforço ao trabalho da catequese e da educação. O nosso desafio, hoje, é construir alicerces sólidos e promover um sentido de colaboração e responsabilidade compartilhada, quando programamos o futuro das nossas paróquias e instituições. Isto não significa transcurar a autoridade espiritual que nos foi confiada, mas discernir e usar sabiamente os múltiplos dons que o Espírito concede à Igreja. De forma particular, significa valorizar a contribuição imensa que as mulheres, leigas e consagradas, deram e continuam a oferecer à vida das nossas comunidades.

Queridos irmãos e irmãs, agradeço-vos o modo como cada um de vós respondeu à pergunta de Jesus que inspirou a vossa vocação: «E tu, que farás?» Encorajo a deixar-vos renovar na alegria daquele primeiro encontro com Jesus e tirar daquela alegria uma renovada fidelidade e vigor. Vou estar convosco nestes dias, pedindo-vos para transmitirdes a minha saudação afetuosa a todos aqueles que não puderam estar aqui connosco, especialmente a tantos sacerdotes idosos e pessoas consagradas aqui espiritualmente presentes.

Durante estes dias do Encontro Mundial das Famílias, gostaria de vos pedir para reflectirdes de modo particular sobre a qualidade do nosso ministério com as famílias, os casais que se preparam para o matrimónio e os nossos jovens. Tenho conhecimentos do que se faz nas vossas Igrejas locais para dar resposta às suas necessidades e apoiá-los no seu caminho de fé. Peço-vos que rezeis fervorosamente pelas famílias, bem como pelas decisões do próximo Sínodo sobre a família.

Agora, com gratidão por tudo o que recebemos e com confiante certeza em todas as nossas necessidades, voltemo-nos para Maria, nossa Mãe Santíssima. Que Ela, com o seu amor de mãe, interceda pelo crescimento da Igreja, na América, no testemunho profético do poder da cruz do seu Filho para levar alegria, esperança e força ao mundo. Rezo por cada um de vós e peço-vos, por favor, que rezeis por mim.

Face à misericórdia de Deus, reconhecer plenamente o nosso pecado

Juliana de Norwich (1342-depois de 1416), mística inglesa 
Revelações do amor divino, cap. 35-36

Deus é, em Si próprio, a justiça por excelência. Todas as Suas obras são justas, e estão ordenadas desde toda a eternidade pelo Seu elevado poder, pela Sua elevada sabedoria, pela Sua elevada bondade. Da mesma maneira que fez tudo pelo melhor, Ele trabalha sem cessar, conduzindo cada coisa ao seu fim. [...] A misericórdia é obra da bondade de Deus; e continuará a operar enquanto o pecado puder atormentar as almas justas. Quando essa permissão for retirada, [...] tudo será estabelecido na justiça, para assim permanecer eternamente.

Deus permite que caiamos. Mas protege-nos, pelo Seu poder e pela Sua sabedoria. Pela Sua misericórdia e pela Sua graça, eleva-nos a uma alegria infinitamente maior. É assim que Ele quer ser conhecido e amado, na justiça e na misericórdia, agora e para sempre. [...] Eu nada mais farei que pecar. Mas o meu pecado não impedirá que Deus opere. A contemplação da Sua obra é uma alegria celeste para uma alma cheia de temor, e que deseja sempre, e cada vez mais amorosamente, fazer a vontade de Deus, com a ajuda da graça.

Esta obra começará aqui na terra. Será gloriosa para Deus e enormemente vantajosa para aqueles que O amam na terra. Quando chegarmos ao céu, seremos testemunhas disso, numa alegria maravilhosa. Esta obra prosseguirá até ao último dia. A glória e a beatitude que daí virão subsistirão no céu, diante de Deus e de todos os Seus santos, para sempre. [...] Aí estará a alegria mais elevada: ver que o próprio Deus é o seu autor. O homem não é senão pecador. Parecia-me que Nosso Senhor me dizia: «Olha! Não tens aqui matéria para seres humilde? Não tens aqui matéria para amar? Não tens aqui matéria para te conheceres a ti própria? Não tens aqui matéria para te alegrares em Mim? Então, por amor de Mim, alegra-te em Mim. Nada Me pode agradar mais.»

O Evangelho de domingo dia 27 de setembro de 2015

João disse-lhe: «Mestre, vimos um homem, que não anda connosco, expulsar os demónios em Teu nome e nós lho proibimos porque não nos segue». Jesus, porém, respondeu: «Não lho proibais, porque não há ninguém que faça um milagre em Meu nome e que possa logo dizer mal de Mim. Porque quem não é contra nós, está connosco. «Quem vos der um copo de água, porque sois de Cristo, em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa. «Quem escandalizar um destes pequeninos que crêem em Mim, melhor fora que lhe atassem ao pescoço a mó que um asno faz girar, e que o lançassem ao mar. Se a tua mão é para ti ocasião de pecado, corta-a; melhor te é entrar na vida eterna mutilado, do que, tendo as duas mãos, ir para a Geena, para o fogo inextinguível. Se o teu pé é para ti ocasião de pecado, corta-o; melhor te é entrar na vida eterna coxo, do que, tendo os dois pés, ser lançado na Geena. Se o teu olho é para ti ocasião de pecado, lança-o fora; melhor te é entrar no reino de Deus sem um olho do que, tendo dois, ser lançado na Geena, “onde o seu verme não morre e o seu fogo não se apaga”.

Mc 9, 38-43.45.47-48

«Aquela linguagem estava-lhes velada»

Orígenes (c. 185-253), presbítero, teólogo
Tratado dos princípios, II, 6, 2; PG 11, 210


De entre todas as grandes coisas e maravilhas que se pode dizer sobre Cristo, há uma que ultrapassa totalmente a admiração de que o espírito humano é capaz; a fragilidade da nossa inteligência mortal não consegue compreendê-la nem imaginá-la. É o facto de a omnipotência da majestade divina, o próprio Verbo do Pai (Jo1,1), a própria Sabedoria de Deus (1Cor 1,24), na qual todas as coisas foram criadas — as visíveis e as invisíveis (Jo 1,3; Col 1,16) — Se ter deixado conter nos limites deste homem que Se manifestou na Judeia. É este o objecto da nossa fé. E há mais: acreditamos que a Sabedoria de Deus entrou no seio de uma mulher e nasceu por entre os vagidos e os choros comuns a todos os recém-nascidos. E aprendemos que, depois, Cristo conheceu a perturbação perante a morte a ponto de exclamar: «A minha alma está numa tristeza de morte» (Mt 26,38), e que foi arrastado para uma morte vergonhosa entre os homens, embora saibamos que ressuscitou ao terceiro dia. […]

Na verdade, fazer com que os ouvidos humanos entendam estas coisas, tentar exprimi-las por palavras, ultrapassa a linguagem dos homens […] e provavelmente a dos anjos.

O Evangelho do dia 26 de setembro de 2015

E todos se admiravam da grandeza de Deus. Enquanto todos admiravam as coisas que fazia, Jesus disse aos discípulos: «Fixai bem estas palavras: O Filho do Homem está para ser entregue nas mãos dos homens». Eles, porém, não entendiam esta linguagem; era-lhes tão obscura que não a compreendiam; e tinham medo de O interrogar acerca dela.

Lc 9, 43b-45

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Discurso do Santo Padre na Escola Nossa Senhora Rainha dos Anjos em Nova Iorque

Queridas crianças!

Estou contente por estar aqui convosco, juntamente com toda esta grande família que vos acompanha. Vejo os vossos professores e educadores, os pais e outros familiares. Obrigado pela recepção! E peço desculpa, especialmente aos professores, porque «roubo» qualquer minuto à aula.

Explicaram-me que uma das características bonitas desta escola é alguns alunos virem doutros lugares, até mesmo doutros países. Uma boa coisa, embora nem sempre seja fácil ter de deslocar-se e encontrar uma nova casa, novos vizinhos e amigos; não é nada fácil. Ao princípio pode ser um pouco cansativo, não é verdade? Muitas vezes acontece ter de aprender uma nova língua, adaptar-se a uma nova cultura, um novo clima. Quantas coisas é preciso aprender! E não falo só dos deveres da escola...

O lado belo é que encontramos também novos amigos, encontramos pessoas que nos abrem as portas e mostram a sua ternura, a sua amizade, a sua compreensão, e procuram ajudar-nos para que não nos sintamos estranhos, mas em casa. É importante não só para vós, mas também para as vossas famílias. Desta forma, a escola torna-se uma grande família para todos, onde juntamente com as nossas mães, pais, avós, educadores, professores e companheiros aprendemos a ajudar-nos, a partilhar o que há de bom em cada um, a dar o melhor de nós mesmos, a trabalhar em grupo e a perseverar nos nossos objetivos.

Muito perto daqui há uma rua muito importante com o nome duma pessoa que fez muito bem pelos outros e que quero recordar convosco. Refiro-me ao Pastor Martin Luther King. Um dia disse ele: «Tenho um sonho». Sonhou que muitas crianças, muitas pessoas haveriam de ter igualdade de oportunidades. Sonhou que muitas crianças como vós haveriam de ter acesso à educação. É bom ter sonhos e poder lutar por eles.

Hoje queremos continuar a sonhar, e alegramo-nos por todas as oportunidades que permitam – tanto a vós como a nós, grandes – não perder a esperança num mundo melhor, com maiores possibilidades. Soube que um dos sonhos dos vossos pais, dos vossos educadores é que possais crescer com alegria. É sempre muito belo ver uma criança sorrir. Aqui vê-se que estais sorridentes: continuai assim e contagiai com a alegria todas as pessoas que tendes perto.

Queridas crianças, vós tendes o direito de sonhar, e muito me alegro por poderdes encontrar nesta escola, nos vossos amigos, nos vossos professores o apoio necessário para o fazer. Onde há sonhos, onde há alegria, aí sempre está Jesus; porque Jesus é alegria, e quer ajudar-nos para que esta alegria dure todos os dias.

Antes de vos deixar, gostaria de vos dar um «dever de casa», está bem? É um pedido simples, mas muito importante: não vos esqueçais de rezar por mim, para que eu possa partilhar com muitas pessoas a alegria de Jesus. E rezemos também para que muitos possam gozar desta alegria que tendes vós.

Que Deus vos abençoe e Nossa Senhora vos proteja!

Discurso completo do Santo Padre perante a Assembleia-Geral das Nações Unidas


Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores!

Mais uma vez, seguindo uma tradição de que me sinto honrado, o Secretário-Geral das Nações Unidas convidou o Papa para falar a esta distinta assembleia das nações. Em meu nome e em nome de toda a comunidade católica, Senhor Ban Ki-moon, desejo manifestar-lhe a gratidão mais sincera e cordial; agradeço-lhe também as suas amáveis palavras. Saúdo ainda os chefes de Estado e de Governo aqui presentes, os embaixadores, os diplomatas e os funcionários políticos e técnicos que os acompanham, o pessoal das Nações Unidas empenhado nesta LXX Sessão da Assembleia Geral, o pessoal de todos os programas e agências da família da ONU e todos aqueles que, por um título ou outro, participam nesta reunião. Por vosso intermédio, saúdo também os cidadãos de todas as nações representadas neste encontro. Obrigado pelos esforços de todos e cada um em prol do bem da humanidade.

Esta é a quinta vez que um Papa visita as Nações Unidas. Fizeram-no os meus antecessores Paulo VI em 1965, João Paulo II em 1979 e 1995 e o meu imediato antecessor, hoje Papa emérito Bento XVI, em 2008. Nenhum deles poupou expressões de reconhecido apreço pela Organização, considerando-a a resposta jurídica e política adequada para o momento histórico, caracterizado pela superação das distâncias e das fronteiras graças à tecnologia e, aparentemente, superação de qualquer limite natural à afirmação do poder. Uma resposta imprescindível, dado que o poder tecnológico, nas mãos de ideologias nacionalistas ou falsamente universalistas, é capaz de produzir atrocidades tremendas. Não posso deixar de me associar ao apreçamento dos meus antecessores, reiterando a importância que a Igreja Católica reconhece a esta instituição e as esperanças que coloca nas suas atividades.

A história da comunidade organizada dos Estados, representada pelas Nações Unidas, que festeja nestes dias o seu septuagésimo aniversário, é uma história de importantes sucessos comuns, num período de inusual aceleração dos acontecimentos. Sem pretender ser exaustivo, pode-se mencionar a codificação e o desenvolvimento do direito internacional, a construção da normativa internacional dos direitos humanos, o aperfeiçoamento do direito humanitário, a solução de muitos conflitos e operações de paz e reconciliação, e muitas outras aquisições em todos os sectores da projecção internacional das actividades humanas. Todas estas realizações são luzes que contrastam a obscuridade da desordem causada por ambições descontroladas e egoísmos colectivos. Apesar de serem muitos os problemas graves por resolver, todavia é seguro e evidente que, se faltasse toda esta actividade internacional, a humanidade poderia não ter sobrevivido ao uso descontrolado das suas próprias potencialidades. Cada um destes avanços políticos, jurídicos e técnicos representa um percurso de concretização do ideal da fraternidade humana e um meio para a sua maior realização.

Por isso, presto homenagem a todos os homens e mulheres que serviram, com lealdade e sacrifício, a humanidade inteira nestes setenta anos. Em particular, desejo hoje recordar aqueles que deram a sua vida pela paz e a reconciliação dos povos, desde Dag Hammarskjöld até aos inúmeros funcionários, de qualquer grau, caídos nas missões humanitárias de paz e reconciliação.

A experiência destes setenta anos demonstra que, para além de tudo o que se conseguiu, há constante necessidade de reforma e adaptação aos tempos, avançando rumo ao objectivo final que é conceder a todos os países, sem excepção, uma participação e uma incidência reais e equitativas nas decisões. Esta necessidade duma maior equidade é especialmente verdadeira nos órgãos com capacidade executiva real, como o Conselho de Segurança, os organismos financeiros e os grupos ou mecanismos criados especificamente para enfrentar as crises económicas. Isto ajudará a limitar qualquer espécie de abuso ou usura especialmente sobre países em vias de desenvolvimento. Os Organismos Financeiros Internacionais devem velar pelo desenvolvimento sustentável dos países, evitando uma sujeição sufocante desses países a sistemas de crédito que, longe de promover o progresso, submetem as populações a mecanismos de maior pobreza, exclusão e dependência.

A tarefa das Nações Unidas, com base nos postulados do Preâmbulo e dos primeiros artigos da sua Carta constitucional, pode ser vista como o desenvolvimento e a promoção da soberania do direito, sabendo que a justiça é um requisito indispensável para se realizar o ideal da fraternidade universal. Neste contexto, convém recordar que a limitação do poder é uma ideia implícita no conceito de direito. Dar a cada um o que lhe é devido, segundo a definição clássica de justiça, significa que nenhum indivíduo ou grupo humano se pode considerar omnipotente, autorizado a pisar a dignidade e os direitos dos outros indivíduos ou dos grupos sociais. A efectiva distribuição do poder (político, económico, militar, tecnológico, etc.) entre uma pluralidade de sujeitos e a criação dum sistema jurídico de regulação das reivindicações e dos interesses realiza a limitação do poder. Mas, hoje, o panorama mundial apresenta-nos muitos direitos falsos e, ao mesmo tempo, amplos sectores sem protecção, vítimas inclusivamente dum mau exercício do poder: o ambiente natural e o vasto mundo de mulheres e homens excluídos são dois sectores intimamente unidos entre si, que as relações políticas e económicas preponderantes transformaram em partes frágeis da realidade. Por isso, é necessário afirmar vigorosamente os seus direitos, consolidando a proteção do meio ambiente e pondo fim à exclusão.

Antes de mais nada, é preciso afirmar a existência dum verdadeiro «direito do ambiente», por duas razões. Em primeiro lugar, porque como seres humanos fazemos parte do ambiente. Vivemos em comunhão com ele, porque o próprio ambiente comporta limites éticos que a acção humana deve reconhecer e respeitar. O homem, apesar de dotado de «capacidades originais [que] manifestam uma singularidade que transcende o âmbito físico e biológico» (Enc. Laudato si’, 81), não deixa ao mesmo tempo de ser uma porção deste ambiente. Possui um corpo formado por elementos físicos, químicos e biológicos, e só pode sobreviver e desenvolver-se se o ambiente ecológico lhe for favorável. Por conseguinte, qualquer dano ao meio ambiente é um dano à humanidade. Em segundo lugar, porque cada uma das criaturas, especialmente seres vivos, possui em si mesma um valor de existência, de vida, de beleza e de interdependência com outras criaturas. Nós cristãos, juntamente com as outras religiões monoteístas, acreditamos que o universo provém duma decisão de amor do Criador, que permite ao homem servir-se respeitosamente da criação para o bem dos seus semelhantes e para a glória do Criador, mas sem abusar dela e muito menos sentir-se autorizado a destruí-la. E, para todas as crenças religiosas, o ambiente é um bem fundamental (cf. ibid., 81).

O abuso e a destruição do meio ambiente aparecem associados, simultaneamente, com um processo ininterrupto de exclusão. Na verdade, uma ambição egoísta e ilimitada de poder e bem-estar material leva tanto a abusar dos meios materiais disponíveis como a excluir os fracos e os menos hábeis, seja pelo facto de terem habilidades diferentes (deficientes), seja porque lhes faltam conhecimentos e instrumentos técnicos adequados ou possuem uma capacidade insuficiente de decisão política. A exclusão económica e social é uma negação total da fraternidade humana e um atentado gravíssimo aos direitos humanos e ao ambiente. Os mais pobres são aqueles que mais sofrem esses ataques por um triplo e grave motivo: são descartados pela sociedade, ao mesmo tempo são obrigados a viver de desperdícios, e devem sofrer injustamente as consequências do abuso do ambiente. Estes fenómenos constituem, hoje, a «cultura do descarte» tão difundida e inconscientemente consolidada.

O carácter dramático de toda esta situação de exclusão e desigualdade, com as suas consequências claras, leva-me, juntamente com todo o povo cristão e muitos outros, a tomar consciência também da minha grave responsabilidade a este respeito, pelo que levanto a minha voz, em conjunto com a de todos aqueles que aspiram por soluções urgentes e eficazes. A adopção da «Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável», durante a Cimeira Mundial que hoje mesmo começa, é um sinal importante de esperança. Estou confiado também que a Conferência de Paris sobre as alterações climáticas alcance acordos fundamentais e efetivos.

Todavia não são suficientes os compromissos solenemente assumidos, mesmo se constituem um passo necessário para a solução dos problemas. A definição clássica de justiça, a que antes me referi, contém como elemento essencial uma vontade constante e perpétua: Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi. O mundo pede vivamente a todos os governantes uma vontade efectiva, prática, constante, feita de passos concretos e medidas imediatas, para preservar e melhorar o ambiente natural e superar o mais rapidamente possível o fenómeno da exclusão social e económica, com suas tristes consequências de tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de meninos e meninas, trabalho escravo, incluindo a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e criminalidade internacional organizada. Tal é a magnitude destas situações e o número de vidas inocentes envolvidas que devemos evitar qualquer tentação de cair num nominalismo declamatório com efeito tranquilizador sobre as consciências. Devemos ter cuidado com as nossas instituições para que sejam realmente eficazes na luta contra estes flagelos.

A multiplicidade e complexidade dos problemas exigem servir-se de instrumentos técnicos de medição. Isto, porém, esconde um duplo perigo: limitar-se ao exercício burocrático de redigir longas enumerações de bons propósitos – metas, objectivos e indicadores estatísticos –, ou julgar que uma solução teórica única e apriorística dará resposta a todos os desafios. É preciso não perder de vista, em momento algum, que a ação política e económica só é eficaz quando é concebida como uma atividade prudencial, guiada por um conceito perene de justiça e que tem sempre presente que, antes e para além de planos e programas, existem mulheres e homens concretos, iguais aos governantes, que vivem, lutam e sofrem e que muitas vezes se vêem obrigados a viver miseravelmente, privados de qualquer direito.

Para que estes homens e mulheres concretos possam subtrair-se à pobreza extrema, é preciso permitir-lhes que sejam actores dignos do seu próprio destino. O desenvolvimento humano integral e o pleno exercício da dignidade humana não podem ser impostos; devem ser construídos e realizados por cada um, por cada família, em comunhão com os outros seres humanos e num relacionamento correcto com todos os ambientes onde se desenvolve a sociabilidade humana – amigos, comunidades, aldeias e vilas, escolas, empresas e sindicatos, províncias, países, etc. Isto supõe e exige o direito à educação – mesmo para as meninas (excluídas em alguns lugares) –, que é assegurado antes de mais nada respeitando e reforçando o direito primário das famílias a educar e o direito das Igrejas e de agregações sociais a apoiar e colaborar com as famílias na educação das suas filhas e dos seus filhos. A educação, assim entendida, é a base para a realização da Agenda 2030 e para a recuperação do ambiente.

Ao mesmo tempo, os governantes devem fazer o máximo possível por que todos possam dispor da base mínima material e espiritual para tornar efectiva a sua dignidade e para formar e manter uma família, que é a célula primária de qualquer desenvolvimento social. A nível material, este mínimo absoluto tem três nomes: casa, trabalho e terra. E, a nível espiritual, um nome: liberdade do espírito, que inclui a liberdade religiosa, o direito à educação e os outros direitos civis.

Por todas estas razões, a medida e o indicador mais simples e adequado do cumprimento da nova Agenda para o desenvolvimento será o acesso efectivo, prático e imediato, para todos, aos bens materiais e espirituais indispensáveis: habitação própria, trabalho digno e devidamente remunerado, alimentação adequada e água potável; liberdade religiosa e, mais em geral, liberdade do espírito e educação. Ao mesmo tempo, estes pilares do desenvolvimento humano integral têm um fundamento comum, que é o direito à vida, e, em sentido ainda mais amplo, aquilo a que poderemos chamar o direito à existência da própria natureza humana.

A crise ecológica, juntamente com a destruição de grande parte da biodiversidade, pode pôr em perigo a própria existência da espécie humana. As nefastas consequências duma irresponsável má-gestão da economia mundial, guiada unicamente pela ambição de lucro e poder, devem constituir um apelo a esta severa reflexão sobre o homem: «O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza» (BENTO XVI, Discurso ao Parlamento da República Federal da Alemanha, 22 de Setembro de 2011; citado na Enc. Laudato si’, 6). A criação vê-se prejudicada «onde nós mesmos somos a última instância (…). E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos» (BENTO XVI, Discurso ao clero da Diocese de Bolzano-Bressanone, 6 de Agosto de 2008; citado na Enc. Laudato si’, 6). Por isso, a defesa do ambiente e a luta contra a exclusão exigem o reconhecimento duma lei moral inscrita na própria natureza humana, que inclui a distinção natural entre homem e mulher (cf. Enc. Laudato si’, 155) e o respeito absoluto da vida em todas as suas fases e dimensões (cf. ibid., 123; 136).

Sem o reconhecimento de alguns limites éticos naturais inultrapassáveis e sem a imediata actuação dos referidos pilares do desenvolvimento humano integral, o ideal de «preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra» (Carta das Nações Unidas, Preâmbulo) e «promover o progresso social e um padrão mais elevado de viver em maior liberdade» (ibid.) corre o risco de se tornar uma miragem inatingível ou, pior ainda, palavras vazias que servem como desculpa para qualquer abuso e corrupção ou para promover uma colonização ideológica através da imposição de modelos e estilos de vida anormais, alheios à identidade dos povos e, em última análise, irresponsáveis.

A guerra é a negação de todos os direitos e uma agressão dramática ao meio ambiente. Se se quiser um desenvolvimento humano integral autêntico para todos, é preciso continuar incansavelmente no esforço de evitar a guerra entre as nações e entre os povos.

Para isso, é preciso garantir o domínio incontrastado do direito e o recurso incansável às negociações, aos mediadores e à arbitragem, como é proposto pela Carta das Nações Unidas, verdadeira norma jurídica fundamental. A experiência destes setenta anos de existência das Nações Unidas, em geral, e, de modo particular, a experiência dos primeiros quinze anos do terceiro milénio mostram tanto a eficácia da plena aplicação das normas internacionais como a ineficácia da sua inobservância. Se se respeita e aplica a Carta das Nações Unidas, com transparência e sinceridade, sem segundos fins, como um ponto de referência obrigatório de justiça e não como um instrumento para mascarar intenções ambíguas, obtém-se resultados de paz. Quando, pelo contrário, se confunde a norma com um simples instrumento que se usa quando resulta favorável e se contorna quando não o é, abre-se uma verdadeira caixa de Pandora com forças incontroláveis, que prejudicam seriamente as populações inermes, o ambiente cultural e também o ambiente biológico.

O Preâmbulo e o primeiro artigo da Carta das Nações Unidas indicam as bases da construção jurídica internacional: a paz, a solução pacífica das controvérsias e o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações. Contrasta fortemente com estas afirmações – e nega-as na prática – a tendência sempre presente para a proliferação das armas, especialmente as de destruição em massa, como o podem ser as armas nucleares. Uma ética e um direito baseados sobre a ameaça da destruição recíproca – e, potencialmente, de toda a humanidade – são contraditórios e constituem um dolo em toda a construção das Nações Unidas, que se tornariam «Nações Unidas pelo medo e a desconfiança». É preciso trabalhar por um mundo sem armas nucleares, aplicando plenamente, na letra e no espírito, o Tratado de Não-Proliferação para se chegar a uma proibição total destes instrumentos.

O recente acordo sobre a questão nuclear, numa região sensível da Ásia e do Médio Oriente, é uma prova das possibilidades da boa vontade política e do direito, cultivados com sinceridade, paciência e constância. Faço votos de que este acordo seja duradouro e eficaz e, com a colaboração de todas as partes envolvidas, produza os frutos esperados.

Nesta linha, não faltam provas graves das consequências negativas de intervenções políticas e militares não coordenadas entre os membros da comunidade internacional. Por isso, embora desejasse não ter necessidade de o fazer, não posso deixar de reiterar os meus apelos que venho repetidamente fazendo em relação à dolorosa situação de todo o Médio Oriente, do Norte de África e de outros países africanos, onde os cristãos, juntamente com outros grupos culturais ou étnicos e também com aquela parte dos membros da religião maioritária que não quer deixar-se envolver pelo ódio e a loucura, foram obrigados a ser testemunhas da destruição dos seus lugares de culto, do seu património cultural e religioso, das suas casas e haveres, e foram postos perante a alternativa de escapar ou pagar a adesão ao bem e à paz com a sua própria vida ou com a escravidão.

Estas realidades devem constituir um sério apelo a um exame de consciência por parte daqueles que têm a responsabilidade pela condução dos assuntos internacionais. Não só nos casos de perseguição religiosa ou cultural, mas em toda a situação de conflito, como na Ucrânia, Síria, Iraque, Líbia, Sudão do Sul e na região dos Grandes Lagos, antes dos interesses de parte, mesmo legítimos, existem rostos concretos. Nas guerras e conflitos, existem pessoas, nossos irmãos e irmãs, homens e mulheres, jovens e idosos, meninos e meninas que choram, sofrem e morrem. Seres humanos que se tornam material de descarte, enquanto nada mais se faz senão enumerar problemas, estratégias e discussões.

Como pedi ao Secretário-Geral das Nações Unidas, na minha carta de 9 de Agosto de 2014, «a mais elementar compreensão da dignidade humana obriga a comunidade internacional, em particular através das regras e dos mecanismos do direito internacional, a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para impedir e prevenir ulteriores violências sistemáticas contra as minorias étnicas e religiosas» e para proteger as populações inocentes.

Nesta mesma linha, quero citar outro tipo de conflitualidade, nem sempre assim explicitada, mas que inclui silenciosamente a morte de milhões de pessoas. Muitas das nossas sociedades vivem um tipo diferente de guerra com o fenómeno do narcotráfico. Uma guerra «suportada» e pobremente combatida. O narcotráfico, por sua própria natureza, é acompanhado pelo tráfico de pessoas, lavagem de dinheiro, tráfico de armas, exploração infantil e outras formas de corrupção. Corrupção, que penetrou nos diferentes níveis da vida social, política, militar, artística e religiosa, gerando, em muitos casos, uma estrutura paralela que põe em perigo a credibilidade das nossas instituições.

Comecei a minha intervenção recordando as visitas dos meus antecessores. Agora quereria, em particular, que as minhas palavras fossem como que uma continuação das palavras finais do discurso de Paulo VI, pronunciadas quase há cinquenta anos, mas de valor perene. «Eis chegada a hora em que se impõe uma pausa, um momento de recolhimento, de reflexão, quase de oração: pensar de novo na nossa comum origem, na nossa história, no nosso destino comum. Nunca, como hoje, (…) foi tão necessário o apelo à consciência moral do homem. Porque o perigo não vem nem do progresso nem da ciência, que, bem utilizados, poderão, pelo contrário, resolver um grande número dos graves problemas que assaltam a humanidade» (Discurso aos Representantes dos Estados, 4 de Outubro de 1965, n. 7). Sem dúvida que a genialidade humana, bem aplicada, ajudará a resolver, entre outras coisas, os graves desafios da degradação ecológica e da exclusão. E continuo com as palavras de Paulo VI: «O verdadeiro perigo está no homem, que dispõe de instrumentos sempre cada vez mais poderosos, aptos tanto para a ruína como para as mais elevadas conquistas» (ibid.).

A casa comum de todos os homens deve continuar a erguer-se sobre uma recta compreensão da fraternidade universal e sobre o respeito pela sacralidade de cada vida humana, de cada homem e de cada mulher; dos pobres, dos idosos, das crianças, dos doentes, dos nascituros, dos desempregados, dos abandonados, daqueles que são vistos como descartáveis porque considerados meramente como números desta ou daquela estatística. A casa comum de todos os homens deve edificar-se também sobre a compreensão duma certa sacralidade da natureza criada.
Tal compreensão e respeito exigem um grau superior de sabedoria, que aceite a transcendência, renuncie à construção duma elite omnipotente e entenda que o sentido pleno da vida individual e colectiva está no serviço desinteressado aos outros e no uso prudente e respeitoso da criação para o bem comum. Repetindo palavras de Paulo VI, «o edifício da civilização moderna deve construir-se sobre princípios espirituais, os únicos capazes não apenas de o sustentar, mas também de o iluminar e de o animar» (ibid.).

O Gaúcho Martín Fierro, um clássico da literatura da minha terra natal, canta: «Os irmãos estejam unidos, porque esta é a primeira lei. Tenham união verdadeira em qualquer tempo que seja, porque se litigam entre si, devorá-los-ão os de fora».

O mundo contemporâneo, aparentemente interligado, experimenta uma crescente, consistente e contínua fragmentação social que põe em perigo «todo o fundamento da vida social» e assim «acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses» (Enc. Laudato si’, 229).

O tempo presente convida-nos a privilegiar acções que possam gerar novos dinamismos na sociedade e frutifiquem em acontecimentos históricos importantes e positivos (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 223).

Não podemos permitir-nos o adiamento de «algumas agendas» para o futuro. O futuro exige-nos decisões críticas e globais face aos conflitos mundiais que aumentam o número dos excluídos e necessitados.

A louvável construção jurídica internacional da Organização das Nações Unidas e de todas as suas realizações – melhorável como qualquer outra obra humana e, ao mesmo tempo, necessária – pode ser penhor dum futuro seguro e feliz para as gerações futuras. Sê-lo-á se os representantes dos Estados souberem pôr de lado interesses sectoriais e ideologias e procurarem sinceramente o serviço do bem comum. Peço a Deus omnipotente que assim seja, assegurando-vos o meu apoio, a minha oração, bem como o apoio e as orações de todos os fiéis da Igreja Católica, para que esta Instituição, com todos os seus Estados-Membros e cada um dos seus funcionários, preste sempre um serviço eficaz à humanidade, um serviço respeitoso da diversidade e que saiba potenciar, para o bem comum, o melhor de cada nação e de cada cidadão.

A bênção do Altíssimo, a paz e a prosperidade para todos vós e para todos os vossos povos. Obrigado!