sexta-feira, 20 de junho de 2014

A Velha, a Mota e Nós

1. a) Um dia, nos idos da minha juventude, caminhando eu pela Avenida de Roma, da praça de Londres para o Lg. Frei Heitor Pinto, um pouco antes de chegar ao cruzamento com a linha férrea, perto do Maria Matos, deparei com um aglomerado de gente no meio da via - naquele tempo, tirante as horas de ponta, o trânsito era escasso -, rodeando espavorida uma velhinha estendida no alcatrão, empapada no próprio sangue que lhe corria abundante de uma perna praticamente decepada. A pouca distância uma Gilera 50 empenada, modelo recentíssimo em Portugal, gotejando gasolina. De pé, com o capacete na mão, pálido como a cal mais branca, um jovem que logo percebi ser o condutor do motociclo. Uma vez que já se tinha chamado o 115 (hoje 112) e a mulher estraçalhada estava sendo assistida pelos populares, procurei confortar o moço dirigindo-lhe uma pergunta com o intuito de lhe possibilitar uma oportunidade de desabafar. A sua resposta pronta, gélida, dura, implacável, foi: O estupor da velha estragou-me a mota toda!

b) A velha tinha sido nova, linda de morrer, a pele lisa, os olhos vivos, o corpo estatuário. Andou na barriga da mãe, amamentou-se aos seus peitos, brincou no colo dos pais, aprendeu entre tombos a andar, adolescente e jovem teve os seus sonhos, os seus devaneios, apaixonou-se, namorou, casou-se. Com paciência aturou as manias do marido, com grande sacrifício criou os filhos que lhe deram grandes desgostos. Enviuvou cedo, trajou o luto, cismou com saudade. Viu nascer os netos, tomou conta deles, enxugou-lhes as lágrimas, mudou-lhes e lavou-lhes as fraldas (naquele tempo era assim), deu-lhes de comer, aturou-lhes as birras, curou-lhes a feridas, passou noites em claro a cuidá-los nas doenças. Quando deixaram de precisar dela atiraram-na para um lar escabroso. As visitas eram raras, os carinhos nenhuns. O único consolo que possuía era assistir à missa diariamente e conversar com o Senhor no Sacrário confiando-Lhe a alma do seu marido e as vidas dos seus familiares. Era de lá, da Igreja paroquial, que vinha quando ao atravessar a rua lhe caiu em cima aquela calamidade, veloz como uma turba de diabos que se precipita para perder o mundo. A sua muita idade ofuscara-lhe a vista, entupira-lhe os ouvidos, estorvara-lhe a percepção das distâncias e o difícil cálculo das velocidades.

c) Ele era de boas famílias. Tinha andado no melhor colégio do país e agora cursava engenharia no Técnico. A mota tinha sido caríssima, novinha em folha fora estragada pelo raio da velha. O veículo valia muito, a velha nada. Ele identificava-se com o que tinha. Ouvia o pai dizer, quando alguém chocava com o seu Ferrari, bateram-me. Cada visita lá de casa ao ver o que possuíam, logo os considerava mais. Daí que tenha concluído que ser é ter. Tenho muito, sou muito. Não tenho nada, nada sou.

2. No Novo Testamento os Apóstolos e Evangelistas reservam a palavra “caríssimo” somente para as pessoas, que Jesus Cristo veio resgatar. Esta palavra encontra-se em S. Lucas, S. Paulo, S. Pedro e S. João: no singular 7 vezes e no plural 20. A razão de tal uso é dada por S. Paulo e por S. Pedro: “Fostes comprados por um alto preço! Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo.” (1 Cor 6, 20); “Fostes comprados por um alto preço; não vos torneis escravos dos homens.” (1 Cor 7, 23); “ … fostes resgatados da vossa vã maneira de viver herdada dos vossos pais, não a preço de bens corruptíveis, prata ou ouro, mas pelo sangue precioso de Cristo … “. (1 Pe 1, 18-19).

O Pai criou-nos por Cristo no Espírito Santo, fazendo-nos à imagem e semelhança do Seu Filho unigénito. Como tivéssemos desbaratado a nossa dignidade o Deus Filho fez-Se um de nós para a restaurar e sublimar, redimindo-nos pela Sua morte e Ressurreição. Uma gota de sangue do Deus humanado vale, evidentemente, mais do que todo o universo. Por isso todas as riquezas por mais abundantes e preciosas que sejam não passam de lixo imundo em comparação com aqueles por quem Jesus Cristo derramou o Seu Sangue. Quem beber desse Sangue torna-se irmão de sangue do Senhor: “Quem realmente … bebe o Meu sangue fica a morar em Mim e Eu nele.” (Jo 6, 56).

Valiosíssimas, caríssimas são as pessoas. Só elas, humanamente falando, não têm preço. Tudo o mais se compra ou vende, se negoceia. As coisas usam-se, as pessoas amam-se, em todas as etapas da sua existência, desde o momento da concepção até à morte natural. O valor das coisas é relativo ao bem absoluto, transcendente, da dignidade da pessoa humana. Isto é, tanto quanto servem, protegem e promovem a pessoa tanto valem e nada mais. À honra de Cristo. Ámen.

Nuno Serras Pereira

17. 06. 2009

«Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração»

São Vicente de Paulo (1581-1660), presbítero, fundador de comunidades religiosas 
Conferência de 16 maio 1659, «Sur l’indifférence»


Onde está o coração que ama? No objecto do seu amor. Assim, onde está o nosso amor, aí está cativo o nosso coração; não consegue libertar-se, não consegue elevar-se, não consegue ir nem para a direita nem para a esquerda; ei-lo bloqueado. Onde está o tesouro do avaro, aí está o seu coração; e onde estiver o nosso coração, aí estará o nosso tesouro. O que é deplorável é que as coisas que nos mantêm nessa servidão normalmente são completamente indignas de nós.

E que coisas! Um nada, uma imaginação, uma palavra mais seca que nos dirigiram, a ausência de um acolhimento simpático, uma recusazinha, o simples pensamento de que não somos tidos em grande conta: tudo isso nos fere e nos indispõe ao ponto de não conseguirmos recuperar! O amor-próprio amarra-nos a essas feridas imaginárias; não conseguimos sair daí, ficamos presos interiormente. E porquê? Porque estamos cativos desta paixão. […] Será que temos a «gloriosa liberdade dos filhos de Deus?» (Rom 8,21) Ou estamos apegados aos bens, às comodidades, às honrarias? […]

Ó Salvador, Vós abristes-nos a porta da liberdade; ensinai-nos a encontrá-la. Fazei-nos compreender a importância do privilégio que nos destes [a liberdade]; fazei-nos recorrer a Vós para o alcançar. Iluminai-nos, meu Salvador, para vermos a que estamos apegados e dai-nos, por favor, a liberdade dos filhos de Deus.

(Fonte: Evangelho Quotidiano)

O Evangelho do dia 20 de junho de 2014

«Não acumuleis para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e onde os ladrões arrombam as paredes e roubam. Entesourai para vós tesouros no céu, onde nem a ferrugem nem a traça os consomem, e onde os ladrões não arrombam as paredes nem roubam. Porque onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração. «O olho é a lâmpada do corpo. Se o teu olho for são, todo o teu corpo terá luz. Mas, se teu olho for malicioso todo o teu corpo estará em trevas. Se, pois, a luz que há em ti é trevas, quão tenebrosas serão essas trevas! 

Mt 6, 19-23