Ainda há muita gente que ama verdadeiramente Portugal. Ama-o, não por ser grande e próspero, não pelas suas obras e feitos, não omitindo fraquezas e misérias. Ama-o por ser o que é. Ama-o por ser nosso. Ama-o por ser aquilo que somos.
Hoje é preciso dizer isto, pois o que se ouve é precisamente o contrário. A crise é má conselheira e a cada passo alguém sente a necessidade de denegrir a sociedade e insultar o País. Estamos mal e não era suposto estarmos. Houve erros, roubos, abusos que não eram para acontecer. Devíamos ser perfeitos, e afinal somos humanos. Isso prova que o País não presta e temos de o censurar.
É indiscutível o terrível sofrimento de tantos e a legítima indignação por erros inacreditáveis, ultrajes descarados, crimes impunes. Mas tudo isso remete apenas para pessoas concretas, factos particulares, circunstâncias específicas. Extrapolar de situações individuais para injúrias colectivas é, em si mesmo, um erro, um ultraje, um abuso. Apesar de comum.
Existe mesmo um prazer mórbido em exagerar os males, uma satisfação doentia em coleccionar misérias e maldades. Muitos sentem ânsia em apregoar desgraças, em afirmar que sempre foi assim, que Portugal nunca saiu da "cepa torta", que "este país" não tem emenda. Em blogues e conversas de café surgem verdadeiros desafios, concursos, congressos de injúrias, aliás, no cumprimento de antiga tradição nacional. Há gerações que alguns intelectuais, cheios da própria superioridade, fazem questão em analisar e explicar a pretensa boçalidade nacional, esmiuçando causas de uma suposta decadência lusitana. Sem se darem conta de que esses esforços são, em si mesmos, os verdadeiros sinais da alegada decadência. O País não é mau, apesar da inegável mediocridade dessas elites.
Esta crise, como todas as anteriores, não é sinal de especial fraqueza e inferioridade. Dramas destes existem em todas as épocas e latitudes. Todos os povos passam continuamente por momentos altos e baixos, épocas de grandeza e sofrimento. Faz parte da natureza humana. Afinal, cada crise é apenas um desafio à presente geração para vencer as dificuldades que lhe competem, como as anteriores fizeram. Como elas, podemos conseguir ou falhar. Mas a culpa do resultado não é do País, cultura ou tradição nacional. É mesmo só nossa.
Outro sinal, este inverso, do mesmo problema é a reacção que exalta a grandeza lusitana de forma exagerada e mítica. É verdade que, ao contrário do que dizem os mórbidos, há muito de que nos orgulhar na história, que tem características únicas e espantosas: as mais antigas e estáveis fronteiras do planeta, enorme diversidade em pequeno espaço, influência espalhada pelo mundo, resiliência, hospitalidade, bonomia, imaginação, improvisação. Tal não deve gerar orgulho, raiz de todo o mal, mas alegria e humildade.
Em tudo isto há mérito e sorte, empenho e acaso, misturado com muita mesquinhez. Afinal somos humanos. Grandes artistas e pensadores, grandes epopeias e resultados são sempre realizações de luz e sombra. Os Descobrimentos, gesta ínclita e decisiva, incluíram as maiores baixezas e vergonhas inimagináveis. Simplesmente porque foram humanos.
Além disso, como todas as realidades naturais, nasceram, cresceram, diminuíram e passaram. Chegou uma época, aqui como noutros locais, em que coube a Portugal traçar o rumo da humanidade. Fizemo-lo com grandeza e eficácia, no meio de muitos erros e males. Depois esse tempo passou, não por falha ou fado, mas simplesmente porque, como sempre através dos séculos, a história muda e outros apanham a onda. Não é portanto justificado nem o pedantismo patrioteiro nem o decadentismo masoquista. Portugal é humano, e por isso tem crises e prosperidades, grandezas e misérias.
Acima de tudo, como todos os humanos, anseia ser amado. Amado precisamente como é. Esta é a única atitude séria: amar o País por ele ser nosso. O único que temos. Sem ele nada somos. Amá-lo com tudo o que tem de bom, e é muito, e o que fez de mal, que deve ser mais. Felizmente muita gente ama Portugal.
João César das Neves in DN online